quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Corpo Ardeu

Atirámos um homem do penhasco abaixo.
Toda a aldeia reunida no adro;
corremos sobre ele aos gritos
fizemo-lo cair de grande altura.

O padre disse que agora, sim, é
que começa a verdadeira vida
e eu pensei com muita força e muita fé;
mete a verdadeira vida no cu.

Acordo a meio da noite com os uivos das pessoas
Prendem um homem no manicómio
atam-no à cama, enfiam-lhe comida
pela goela abaixo, engordam-lhe o fígado.

Ele tinha um anjo dentro da cabeça
sempre a levá-lo, a voá-lo muito
para lá das nuvens, repuxava-lhe os fios
forçava-o a uns esgares, uns dizeres obscenos

Quando o deixava planar a meia altura
a uns quinhentos metros, digamos, uma
corrente inesgotável de lenços coloridos
saia-lhe da cartola, com as músicas mais belas.

Tanto medo da loucura,
tantas verdades incómodas ali à mostra,
tantos segredos insuportáveis.
Vamos estabilizá-lo, disseram.

Quero escapar, morrer,
arder-vos por entre os dedos,
ó boas pessoas, ó sãos de espírito,
ó assassinos, adeus.

João Paulo Esteves da Silva, in Doutor Tristeza, Mia Soave, 2015. 

Da Amizade

«Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte.»       
Mário Dionísio