quinta-feira, 2 de junho de 2016

A Missiva de Janeiro Alves em Junho

Amigo Doutor Mara,
Estava eu a estender as minhas meias brancas no estendal, quando recebo inadvertidamente, e como se um taco de basebol me acertasse no lombo, a sua última carta. Doutor Mara, Doutor Mara, Doutor Mara… que deplorável espectáculo pirotécnico da escrita, com foguetes atirados em todas as direcções, e alguns a rebentarem-lhe nas mãos. O doutor mara navega à deriva no meio de um monótono oceano, e atirou um very light a pedir ajuda, só assim posso compreender o seu desespero.
Mas dou-lhe uma sugestão: já que não consegue parar de ingerir papel, experimente comer papel higiénico, quem sabe não ajudará a higienizar o seu discurso. Outra possibilidade é ingerir dois ou três livros de auto-ajuda, capa e tudo, acompanhados de uns goles de água para amolecer as folhas e a sua retórica também.
Eu bem sei que estas cartas são privadas (a não ser que as ande aí a publicar sem a minha autorização) e mal não virá ao mundo com as suas imprecisões e perversas judiações, mas imagine um dia que alguém as lê! É a destruição do meu património intelectual, é a minha pessoa a arder em destroços num inferno de mil chamas, é enfim, o meu fim Doutor Mara.
Ainda lhe pergunto, Doutor Mara, como pode confiar na União dos Amigos de Eisenstein, quando o próprio foi alvo das minhas severas críticas cinematográficas semanais quando escrevia para o semanário que saía de semana a semana? Os estatutos dessa associação são actualmente constituídos por um único artigo – “Artigo único: Esta associação tem como objectivo único e prioritário prejudicar Janeiro Alves de todas as formas possíveis, promovendo o seu enxovalhamento.” – em que a palavra enxovalhamento reúne em si os conceitos de maculação, rebaixamento e emporcalhamento.
Por fim, uma interrogação: Belém? Belém, Doutor Mara? Na última vez que estive fisicamente em Belém ainda nem existiam os pastéis de belém! E metafisicamente já foi o ano passado. Fico portanto estupefacto com estas suas invenções, que naturalmente só podem decorrer do seu estado de debilidade, combinado com a sua precipitada tendência para a fantasia. Há um mundo real à nossa volta, Doutor Mara. Se não consegue acordar, meta o despertador.
Antes de ir aparar o bigode, acabo esta carta com uma sugestão e uma confirmação. Sugiro-lhe que reveja a medicação que anda a fazer. Começaria talvez por reduzir os comprimidos amarelos, e aumentar a dose diária dos verdes. Por fim a confirmação: Marquei para o final deste mês uma visita não oficial a Ponta Delgada para me inteirar do seu estado de saúde, e para discutir consigo assuntos de extrema importância. Levarei comigo um colaborador para tirar apontamentos, e outro para fazer a reportagem, que culminará com a habitual foto do aperto de mão europeu.
            Finalizo desejando-lhe as melhoras da cabeça, e que da próxima vez não me importune com assuntos de menor relevância.

Cordialmente,
Janeiro Alves

Hoje, às 19 horas, na Galeria Miolo.

Cartaz de Victor Marques

"St John’s, Porto de Abrigo - A Frota Branca" no Museu de Ílhavo

Fotografia de Paul Anna Soik (1919-­1999)