quinta-feira, 2 de abril de 2015

"O Céu que nos Protege" de Paul Bowles

O escritor Paul Bowles
      "Na mesa do canto mais escuro estavam sentados três americanos: dois homens novos e uma rapariga. Conversavam tranquilamente, e com modos de gente que tem todo o tempo do mundo para tudo. Um dos homens magro, de rosto ligeiramente crispado e ansioso, dobrava um dos grandes mapas multicolores que estendera pouco antes sobre a mesa. A sua mulher observava os movimentos meticulosos que ele fazia, com gozo e exasperação, os mapas aborreciam-na, e ele estava sempre a consultá-los. Mesmo durante os breves períodos de estabilidade das suas vidas, e que raros tinham sido desde o casamento doze anos antes, bastava que ele visse um mapa para estudá-lo apaixonadamente e se metesse, quase sempre, a planear qualquer nova viagem impossível, mas que eventualmente podia tornar-se realidade. Não se considerava um turista; era sim um viajante. A diferença reside em parte no tempo, explicava. Enquanto o turista geralmente está com pressa de voltar a casa ao fim de algumas semanas ou meses, o viajante, não pertencendo mais a um lugar do que a outro, move-se lentamente, ao longo de anos, de um lugar da terra para outro. Na verdade, era-lhe difícil afirmar, entre tantos lugares onde vivera, em qual deles se sentira mais em casa. Antes da guerra fora a Europa e o Próximo Oriente, durante a guerra as Índias Ocidentais e a América do Sul. E ela acompanhara-o, sem repetir demasiadas vezes ou demasiado amargamente as suas queixas. Nesta altura tinham atravessado o atlântico pela primeira vez desde 1939, com muita bagagem e a intenção de se manterem afastados todos o mais possível dos lugares de guerra. E assim fora, porque, pretendia ele, outra diferença importante entre o turista e o viajante é que o primeiro aceita a sua própria civilização sem questioná-la, enquanto o viajante, ao compará-la com outras civilizações, rejeita aquilo que não gosta. E a guerra era um aspecto da era mecânica que queria esquecer."

in“O Céu que nos Protege”Paul Bowles, 1949, trad. José Agostinho Baptista

Talassoterapia

O escândalo está prestes a acontecer, melhor, já aconteceu, dado que estamos aqui na presença do nosso conhecido amigo Doutor Mara deitado na proa de um protótipo da finlandesa Nautor`s Swan, um veleiro de 30 metros, portanto, com um preço que deve andar na ordem da dezena de milhar de euros e que só na manutenção custa um milhão de euros. É caso para dizer: " -Mas que desfaçatez, Doutor, como foi possível?”. Muito embora, tivesse sido bastante trabalhoso chegar junto dele, pedimos autorização à Junta Internacional de Portos e Marinas,pois julgamos ser possível entamelar algumas perguntas, muito mais que urgentes, necessárias.

Douta Melancolia-Doutor, doutor, como foi possível?
Doutor Mara-Como foi possível?
DM-Sim, doutor, alguém como o senhor neste aparato, opulência, rendido a esta faustosidade existencial?
Doutor Mara-Pois é, meus amigos, creio que a beleza da existência e da vida vem daí, isto é, dessa eventualidade de podermos variar, mudar. Essa contingência de podermos escolher vários caminhos, diversas hipóteses, realizar o impossível. Cantar como o Brel em La Quête:“Rêver un impossible rêve/Porter le chagrin des departs/Brûler d'une possible fièvre/Partir où personne ne part/Aimer jusqu'à la déchirure/Aimer, même trop, même mal,/Tenter, sans force et sans armure,/D'atteindre l'inaccessible étoile.”. Foi isso que eu decidi fazer...
DM: Terá sido por isso que Janeiro Alves decretou a sua ruína, chegou mesmo a aventar a hipótese de falência da sua entidade física. O que tem a dizer sobre isto e sobre Janeiro Alves?
Doutor Mara: Especula-se muito, demasiado até, sobretudo a minha relação com Janeiro Alves. Devolvo-vos a pergunta, quem é Janeiro Alves para dizer seja o que for? A última vez que soube dele ficou preso numa casa de banho de um centro comercial. Fui eu que o salvei ao revelar-lhe técnicas muito simples de abertura de maçanetas. Como posso dar crédito a um inveterado columbófilo dos dias de hoje. Tenho uma profunda estima pelas sua formação e ilustração mas desconfio sempre que o vejo a pregar cantilenas de amor ao próximo. Um utópico, quero eu dizer. A minha crença no ser humano ficou muito abalada quando Janeiro Alves decretou o fim do clã Manaia. A Miriam ainda esta madrugada se queixava disso.
DM- Mas, doutor, os ideiais colectivistas de juventude, as manifestações em que participou a pedir uma maior justiça entre todos os seres humanos, os abaixo-assinados ecologistas, as petições em prol de mais democracia, a exaltação do internacionalismo, enfim, há todo um conjunto de pessoas que deixarão de confiar em si depois disto. Nós próprios ainda não conseguimos acreditar. Esta abundância, este exagero, foi alguma paixão, amor ou inclinação mal resolvida?
Doutor Mara: Meus caros amigos, muito sinceramente, vejo que são muito imaginativos. Não vejo qual é a gravidade da situação. Querem explicar-me, verdadeiramente, o que é que se está a passar?  
DM: Doutor, você está deitado num deck de um “Grand Soleil 54”. O senhor Doutor sabe, por acaso, quanto é que custou este veleiro?
Doutor Mara: Vejo que só vos move o escândalo, a pândega bisbilhoteira, o escarafunchar da vida alheia. Deixem-se de coscuvilhices, meus caros amigos, é tempo de perscrutar o lado positivo do ser humano. Como vocês sabem, vivi durante algum tempo dentro de uma cratera de um vulcão e, subitamente, quis ser skipper de veleiros e iates de grande dimensão. Qual é o mal disso? Demorei um ano a aprender as competências e os requisitos necessários. Demorei treze dias a atravessar o atlântico neste veleiro, e isto porque quis conhecer de forma descontraída e profunda a filha do capitão do barco, dado os espaços exíguos propícios à conversa e à reflexão, senão tinham sido apenas dez dias de travessia. Por isso, deixem-me em paz, se fazem favor.
DM: Skipper… doutor? Pensamos que o veleiro fosse seu, não é mesmo? Mas skipper, doutor, para o havia de lhe dar?
Doutor Mara: A verdade é que já não consigo viver em terra.
DM: Muito obrigado, Doutor.
Doutor Mara: Não voltem nunca!