terça-feira, 15 de setembro de 2015

Ontem escrito numa parede da cidade...

O colchão deve ter sido inventado pelos primeiros campistas.

No interior do livro de Raul Brandão, um recorte de jornal...

Na Fajã

       Ao fim de 10 dias na Fajã, sabemos em que dia chega cada coisa e o que é que nunca chega. Por exemplo, este jornal nunca chega. Estou a escrever sobre um lugar de Portugal onde o PÚBLICO não existe.
        A Fajã tem uma rua que vai da montanha até ao mar, com a igreja, a mercearia, a tasca, o albergue, o largo das árvores e, no fim, em frente ao mar, o restaurante.
     No princípio de Setembro, a igreja prepara a festa. Ao lado, a mercearia mantém-se aberta todos os dias das nove às nove. Há o dia em que chegam os bolos lêvedos, a que toda a gente chama "bolos".           Há o dia em que chega a massa sovada, a que toda a gente chama "massa", e que é uma espécie de massa de pão-de-leite em forma de pão-de-ló.Há o dia em que chegam os queijos frescos, a que toda a gente chama "os queijos da Ilda", e que são os melhores do mundo. Há o dia em que chegam os iogurtes da ilha, autênticas bombas, em copinhos de vidro. Se há dia para verduras, nunca fiquei a saber, mas são pobres. A Fajã não é bom lugar para saladas.
     O albergue parece deserto, de tão quieto. O largo das árvores varia entre dois e três velhos. E no tasco estão os trabalhadores das obras.
Porque há obras na Fajã, e quem me explicou isso foi o meu amigo cozinheiro. É um rapagão de outra ilha com este talento autodidacta, por exemplo, polvo guisado, um polvo do céu. Foi assim que começámos a falar. Cumprimentei-o pelo polvo e ele perguntou-me se eu era do Porto. Do Porto? Porque haveria de ser do Porto? Ah, porque com as pessoas de Lisboa há sempre problemas, nunca nada está bem, disse ele. No fim da conversa, fiquei a saber que éramos vizinhos. Ele também morava na colina. E na conversa seguinte anunciou-me que se ia despedir porque se zangara com o patrão. Mas é fácil arranjar outro trabalho? Ele riu-se, já tinha trabalho, ia para as obras, que era o que gostava mesmo. Mas há assim tantas obras na Fajã? Ui, disse ele. Há muito trabalho nas obras, as pessoas daqui é que não querem. Os homens que param no tasco vêm de fora. E estão a fazer, por exemplo, a segunda, terceira e quarta casas do presidente da câmara em frente ao mar, ou aquele - como chamar-lhe? - empreendimento em frente às piscinas naturais. Estão a acontecer coisas na Fajã, disse o meu amigo cozinheiro. Felizmente, existe o mar, e o mau tempo, pensei eu. Longa vida ao mau tempo. O mar e o mau tempo são as barreiras naturais dos Açores.
       Mas é mesmo pensamento de lisboeta que lá vai 10 dias. A Fajã não quer ser o Funchal mas também não quer este isolamento. Não se nasce aqui, não se é operado aqui, mas morre-se aqui, e uma morte é sempre de todos.
      No dia em que vim embora, a Fajã estava de luto. Um homem que eu vira na véspera a mondar a erva, foi às rochas apanhar cabras para a festa da igreja e caiu. Eu soube quando o meu amigo cozinheiro me bateu à porta. Ia fazer de bombeiro, recolher o corpo.

Alexandra Lucas Coelho, 22 de Setembro de 2010.