É de madrugada e estava eu
já com um pé na porta quando recebi um telefonema que alterou os meus
planos. Encontrava-me assim com duas latas de atum da corretora na mão
quando recebi esse inusitado convite que travou a minha ida ao seu encontro: serei júri da maior prova de vinhos do mundo a realizar este fim de semana na
marina de Cannes. Somos apenas cinco provadores, um de cada continente, por
isso não devo nem posso faltar. É um reconhecimento tardio, mas que julgo vir
no momento certo.
Tencionava, por isso,
visitá-lo com urgência, mesmo que não autorizem visitas, já que soube,
entretanto, que o meu amigo Janeiro não se encontra na plenitude das suas
capacidades, o alerta foi dado pela antiga companheira do meu tio, a sueca
Vicky Malastrom, confirmando o estado grave e alterado da sua personalidade. Ela enviou-me
a tradução singela do poema contido na sua última missiva:“Ajude-me,
salve-me desta tragédia!”. Depreendo deste modo que corre perigo, amigo Janeiro Alves. A loucura quando chega é para todos.
E, talvez por isso, transportaria comigo alguma literatura humorística-satírica com o intuito de trazê-lo de
volta à realidade. Estou certo que o meu amigo tem levado uma vida com
demasiada seriedade, sempre pronto a evidenciar o sacrifício dos dias laboriosos, o longo
calvário em que se tornou a sua existência, demonstrando pouca tolerância e
propensão para o ócio. E olhe, com toda a garantia do que lhe digo, os mangas
de alpaca não tarda irão tomar conta disto.
Enquanto lhe escrevo esta
missiva e atiro mais um par de meias grossas para a mala dourada deste enólogo certificado internacionalmente, avisto as açucenas – “a menina vai à escola” – que
despontam no meu sublime jardim. Terei, assim, que abandonar por agora os meus
estudos relacionados com a botânica ou a higrometria insular tal como essa
visita à casa de restabelecimento mental em que se encontra. Espero, por
instantes, que esta carta o encontre coberto das mais nobres vestes e calçado
com os seus sapatos italianos de cetim afivelados, continue
a ouvir concertos de clarim e harpa para coro de pássaros exóticos. Ou que as
ninfas e ninfetas lhe continuem a fornecer directamente à sua boca os mais
frescos frutos do bosque sussurrando palavras de bonomia aos seus ouvidos bem
como esses fontanários de água celestial permaneçam a jorrar como tónico capilar
para o cabelo que lhe voltou a medrar aos gorgolhões.
Amigo Janeiro Alves, não
tardará muito para que, após o desaguar de vapores etílicos no meu circuito
venal, o acompanhe nos corredores dessa casa magistral povoada de folia.
Seu estimado e maravilhoso amigo,
Doutor Mara