quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Larva

Pelo tempo chamado do Outono,
quando a beleza é mais oculta e calma
e na face das coisas pesa o sono
das águas do desejo, fecho a alma
e fico sem estrelas e sem nome.
Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
Nesse tempo do Outono meu latino
esplendor é uma cinza paciente.
Meu espírito, um lago verde. Quente,
porém, a gota que leveda ao fundo
do silêncio. Depois serei o Dia,
e com poemas e sangue e alegria
nascerei, incontido, sobre o mundo!...

Herberto Helder, in in “Poesia MCMLVIII” [Pastinhas da Queima das Fitas], org. Campos de Figueiredo, Coimbra, 1958.

Tenros e Frágeis

     "Quando os homens ingressam na vida são tenros e frágeis. Quando morrem são hirtos e duros. Por isso, os hirtos e duros são, desde o princípio, mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis mensageiros da vida."

Lao Tsé após leitura da crónica no Expresso de José Tolentino Mendonça.

Ontem escrito numa parede da cidade

Cinco euros por minuto...tendo em conta a duração da peça, propomos um cachet de 150,00€.

As Ruas de Ponta Delgada

       
     "As ruas de Ponta Delgada são estreitas e as casas amplas. A iluminação é feita com candeeiros de azeite, fixos em toscas pedras-favadas, vendo-se aqui e acolá, em frente das melhores casas, um apertado passeio. Noutros respeitos, assemelham-se estas ruas às estreitas ruas de Paris, com um escasso pavimento de pedra ao meio, que funciona como valeta, por onde, com tempo seco, passa um burro acompanhado do condutor, que vai correndo e vociferando atrás. O rés-do-chão das casas é utilizado para lojas, armazéns ou estrebarias. As lojas recebem a luz pelas portas e não teem montra. Não há aqui, portanto, aquela alegre variedade de frontarias e estabelecimentos, como em Inglaterra. Pelas portas abertas se vêem e prateleiras com as mercadorias. Os sinais indicativos dos diversos ramos de negócio estão indicados estão pendurados às portas. Numa, por exemplo vê-se uma dúzia de tiras de algodão estampado, presas a um pequeno pau e flutuando como as fitas do chapéu de um sargento-instrutor. Quer isto dizer que ali dentro está um negócio de fazendas, com os seus panos de algodão, cadarços e meadas. Mais adiante, um pequeno molho de achas, uma cesta de cebolas, algumas cabeças de alho e duas ou três velas penduradas noutro pau, indicam uma mercearia.Um sapateiro tem à porta um feixe de tiras de couro e uma chapeleiro um chapéu pintado na parede. Um talho ostenta  ao vento pedaços de tripa seca ou o grosseiro desenho de um boi ao qual serram um chifre, sendo a serra do mesmo tamanho do serrador. Tal como em alguns becos de Londres, por sobre a porta de um leiteiro, vê-se pintada uma vaca vermelha, arqueada. Um ramo verde de faia indica a loja de vinhos e se houver também um galho de buxo fica-se sabendo que ali se vende aguardente. Assim era na Inglaterra, onde se dizia que "o bom vinho não precisa de ramo". Noutras lojas, vê-se uma pequena tabuleta suspensa de curto pau, com palavras portuguesas significando "bom vinho e aguardente", grosseiramente pintadas. Ao contrário do que acontece entre nós, o nome do lojista não se vê sobre a porta.
      As janelas dos primeiros andares, logo acima das lojas e dos armazéns, são em geral guarnecidas com pequenas varandas de madeira entrelaçada, como nas janelas das nossas leitarias, pintadas de vermelho escuro, verde ou branco. Nas casas maiores vêem-se elegantes varandas de ferro. Pelas goteiras dos telhados escorre água em abundância e a telha da esquina toma frequentemente a forma de um pássaro de asas abertas, ou alonga-se para cima em comprida ponta. Os edifícios são caiados de branco e as ombreiras das portas, cantarias das janelas e cornijas ficam em geral da cor da pedra, cinzento escuro ou negra. Os sapateiros trabalham sentados à entrada das portas, os alfaiates estão acocorados, o ferreiro com o ferro na rua, em frente da porta, cobre carvões em brasa. Os que eu vi sentados em bancos no interior das lojas, pareciam haver sacudido aquela melancolia congénita que lhes atribui, entregando-se a ruidosa alegria."

in Um Inverno nos Açores e Um Verão no Vale das Furnas, de Joseph e Henry Bullar, escrito em 1838-39, numa edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, 1986.