segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Pão, Amor e...filmes Italianos (2)


               
Belissima de Luchino Visconti (1952)
Tanto bastará para que já ouça: “lá vem ele com o neo-realismo”. Por mais que hoje se atribua o neo-realismo à falta de meios para fazer grandes filmes de estúdio, que a teve obviamente, o facto indesmentível é que existiu, coisa que agora a muitos apetece esquecer, re-escrevendo a história como outros apagaram retratos de Trotski (e como outros já nos nossos dias, em nome de não sei de que “politicamente correcto”, se me permitem apagar beatas dos lábios do Malraux em inocentes selos de correio…). É curioso ver como, comentando alguns dos filmes italianos dessa época ainda se consideram como “obras primas” os críticos se apuram em distinguir o que têm de “eterno” e universal (os aspectos magistrais da análise da “condição humana”, os diálogos a, b e c, os planos x, y e z) do que está irremediavelmente  datado”, como sejam, é claro as implicações sociais e políticas. Este “datado” serve, de resto, para arrumar todos os outros filmes. Ora nem sequer foi por serem neo-realistas (alguns não o eram) que os filmes tiveram por cá  o sucesso o sucesso que tiveram. Foi simplesmente por serem o que eram, por dizerem o que diziam. O Portugal de então (Lisboa incluída), sem guerras, destruições ou ocupações, era um pequeno mundo atrasado e miserável, parado no tempo, para o qual aquelas histórias pareciam ter sido inventadas. Com a diferença que os filmes italianos nos diziam que esse mundo – o deles e o nosso – fervilhava de vida, isto é, de emoções, lutas quotidianas, dramas e alegrias. E era certamente isso que neles nos seduzia. Esses filme não eram panfletos incendiários, não terão feito nascer dezenas de revolucionários, mas davam-nos um olhar sobre nós-próprios e sobre o que se passava à nossa volta que nunca poderíamos esperar dos assépticos filmes americanos ou dos elaborados franceses ou ingleses da época, por mais que nos pudessem “agradar”. A produção italiana estava, simplesmente, muito mais próxima de nós.
                  E não nos venham falar da influência das comédias italianas sobre o cinema português dessa altura: os filmes nacionais não eram eram mais do que aproveitamento comercial da popularidade de grandes actores de revista e de comédia (eram os tempos áureos do Parque Mayer), explorando temas como o futebol, as touradas, o fado, estudantes e tricanas, a História pátria ou a alegre vida rural pondo acento nas canções, que a rádio transmitia horas a fio e trauteavam nas ruas – “Água fria da ribeira”, Ó Rua do Capelão”, “Capitão da Rua”, “Coimbra é uma Canção”, etc. etc. Eram, no essencial, filmes de estúdio e de actores, onde a “gente comum” nunca ia além da mera imitação, nem o pretendia.
                 Voltando a Itália, resta a acrescentar que toda aquela imensa explosão de energias, imaginação e desenrascanço veio dar, nos anos que se seguiram, o seu contributo ao chamado “milagre económico italiano”. Um filme ainda nos anos 60 – o admirável “As mãos sobre a cidade”, do Rossi – já lhe anunciava a matriz essencial: o interminável conluio entre o mundo político e as mafias da construção e do imobiliário, que desembocou há poucos na enorme balbúrdia da Itália de hoje, surpreendida (???) consigo própria. Mas isso são outras histórias. Do cinema  italiano, passámos a receber a conta-gotas quase só obras do Fellini, do Visconti e do Antonioni (valha-nos isso!), e pelo meio mais uma ou outra pérola desgarrada, como o “Dia Inesquecível”, retrato de corpo inteiro do fascismo italiano, como nenhum outro.
                 Por cá, ainda não chegou a hora de nenhum “milagre”. Seja o de Milão, ou porventura do do Porto, eterno candidato a salvador não se sabe bem de quê. Quando muito, espera-se pelo “milagre do Euro”, ou por qualquer outro que alguém nos traga, tanto faz. Os filmes italianos terão sido apenas, afinal, a “fantasia” do Pão e Amor que já então procurávamos.
 
in – Pão, amor e filmes italianos. Combate, nº 208 (Mar.), p. 27.
 
João Martins Pereira