Belissima de Luchino Visconti (1952) |
Tanto bastará para que já ouça: “lá vem ele com o neo-realismo”. Por
mais que hoje se atribua o neo-realismo à falta de meios para fazer grandes
filmes de estúdio, que a teve obviamente, o facto indesmentível é que existiu,
coisa que agora a muitos apetece esquecer, re-escrevendo a história como outros
apagaram retratos de Trotski (e como outros já nos nossos dias, em nome de não
sei de que “politicamente correcto”, se me permitem apagar beatas dos lábios do
Malraux em inocentes selos de correio…). É curioso ver como, comentando alguns
dos filmes italianos dessa época ainda se consideram como “obras primas” os
críticos se apuram em distinguir o que têm de “eterno” e universal (os aspectos
magistrais da análise da “condição humana”, os diálogos a, b e c, os planos x,
y e z) do que está irremediavelmente
datado”, como sejam, é claro as implicações sociais e políticas. Este
“datado” serve, de resto, para arrumar todos os outros filmes. Ora nem sequer
foi por serem neo-realistas (alguns não o eram) que os filmes tiveram por
cá o sucesso o sucesso que tiveram. Foi
simplesmente por serem o que eram, por dizerem o que diziam. O Portugal de
então (Lisboa incluída), sem guerras, destruições ou ocupações, era um pequeno
mundo atrasado e miserável, parado no tempo, para o qual aquelas histórias
pareciam ter sido inventadas. Com a diferença que os filmes italianos nos diziam
que esse mundo – o deles e o nosso – fervilhava de vida, isto é, de emoções,
lutas quotidianas, dramas e alegrias. E era certamente isso que neles nos
seduzia. Esses filme não eram panfletos incendiários, não terão feito nascer
dezenas de revolucionários, mas davam-nos um olhar sobre nós-próprios e sobre o
que se passava à nossa volta que nunca poderíamos esperar dos assépticos filmes
americanos ou dos elaborados franceses ou ingleses da época, por mais que nos
pudessem “agradar”. A produção italiana estava, simplesmente, muito mais
próxima de nós.
E não nos venham
falar da influência das comédias italianas sobre o cinema português dessa
altura: os filmes nacionais não eram eram mais do que aproveitamento comercial
da popularidade de grandes actores de revista e de comédia (eram os tempos
áureos do Parque Mayer), explorando temas como o futebol, as touradas, o fado,
estudantes e tricanas, a História pátria ou a alegre vida rural pondo acento
nas canções, que a rádio transmitia horas a fio e trauteavam nas ruas – “Água
fria da ribeira”, Ó Rua do Capelão”, “Capitão da Rua”, “Coimbra é uma Canção”,
etc. etc. Eram, no essencial, filmes de estúdio e de actores, onde a “gente
comum” nunca ia além da mera imitação, nem o pretendia.
Voltando a
Itália, resta a acrescentar que toda aquela imensa explosão de energias,
imaginação e desenrascanço veio dar, nos anos que se seguiram, o seu contributo
ao chamado “milagre económico italiano”. Um filme ainda nos anos 60 – o
admirável “As mãos sobre a cidade”, do Rossi – já lhe anunciava a matriz
essencial: o interminável conluio entre o mundo político e as mafias da
construção e do imobiliário, que desembocou há poucos na enorme balbúrdia da
Itália de hoje, surpreendida (???) consigo própria. Mas isso são outras histórias.
Do cinema italiano, passámos a receber a
conta-gotas quase só obras do Fellini, do Visconti e do Antonioni (valha-nos
isso!), e pelo meio mais uma ou outra pérola desgarrada, como o “Dia
Inesquecível”, retrato de corpo inteiro do fascismo italiano, como nenhum
outro.
Por cá, ainda
não chegou a hora de nenhum “milagre”. Seja o de Milão, ou porventura do do
Porto, eterno candidato a salvador não se sabe bem de quê. Quando muito,
espera-se pelo “milagre do Euro”, ou por qualquer outro que alguém nos traga,
tanto faz. Os filmes italianos terão sido apenas, afinal, a “fantasia” do Pão e
Amor que já então procurávamos.
in – Pão, amor e filmes italianos. Combate, nº 208 (Mar.), p. 27.
João Martins Pereira