sexta-feira, 29 de abril de 2016

WE SEA: Fézada Musical!

Nada como festejar a noite de 24 para 25 de Abril e ouvir música variada e diferentes músicos em conjunto com muita alegria e alvedrio de tocar. O lugar escolhido já tinha sido palco recente do último Tremor ainda que o nome dado ao evento estivesse eivado de um sentimento e carga revivalista. De qualquer modo, esta salutar e curiosa iniciativa permitia um regresso ao espaço do Solar da Graça para encontrar diferentes tipos de propostas musicais. Entretanto, não demorou muito para a grande surpresa da noite soasse aquando do nome da banda em palco fosse sussurrada pelo Rodrigo. A banda já tinha tido outro nome – Broad Beans (Favas Guisadas) e que agora a formação reduzida tinha ganho outra nomenclatura.  E, se havia coisa que dava logo para ver nestes WE SEA, era o enorme à vontade, concentração e entusiasmo com que se apresentaram em palco. Estes chegaram mesmo a ironizar com o ferro de engomar que servia de base aos instrumentos do vocalista. A banda é constituída pelo Rui Rofino, voz e teclas, que demonstra grande confiança na batida e atmosferas musicais e por Clemente Almeida, no teclado e respectivas criações melódicas.
                Foi assim que, numa noite de cravos e música diversa, o espaço do Solar da Graça deu a conhecer estes WE SEA, em pleno estado de graça, com a vantagem do primeiro tema “Ser de Ver” soar de imediato a intensidade e paixão. Que belo poema-canção! É que, subitamente, a banda ribeira-grandense tomou conta daquelas mesas de madeira e público presente com aqueles desenhos e quadros nas paredes a lembrar uma ilha de outros tempos. Rui Rofino canta, por isso, com muita alma e entrega na língua de Antero de Quental.  Quem ouviu pela primeira vez, soou logo a descoberta  e prevê algo muito arejado em embrião, o que só augura um futuro promissor.

3 x William Shakespeare

Soneto 10

Recusa, por vergonha, que não sabes amar,
Tu, que para ti mesmo és tão pouco prudente!
Concede, se puderes, que és por muitos amado,
Porém, que a ninguém amas é por todos sabido.
Pois tu de um ódio tal te encontras possuído
Que mesmo contra ti não ousas conspirar,
E arriscas arruinar esse tecto tão belo,
E havias em desvelo dele melhor cuidar.
Ah, muda o teu pensar, para que eu mude o meu!
Deve o ódio ter lar mais belo que o amor?
Sê como é o teu estar, gracioso e encantador,
Ou ao menos a ti prova o teu bom sentir.
      Torna-te em outro eu, fá-lo por meu amor,
      Possa o belo viver quer nos teus, quer em ti.

Soneto 18

Poderei igualar-te a um dia de Verão?
És mais ameno e brando, e muito mais gentil.
Vacila ao vento rude o rebento em botão
E a vida do Verão, demasiado breve.
Queimando muita vez, o olho do céu brilha,
Muita vez sua face dourada se embacia;
E sempre o que é mais belo da beleza declina
Ao mando do destino ou natural porfia.
Mas não definhará o teu eterno Verão,
Nem a tua beleza há-de deixar de ser,
Nem a Morte dirá que em sua sombra és,
Quando, em eternos versos, no tempo tu cresceres.
     Enquanto alento houver e houver humano olhar,
     Hão-de viver meus versos, e tu neles viver.

Soneto 104

Para mim, belo amigo, nunca terás idade,
Pois tal como me foste, quando te olhei no olhar,
Assim me és: belo ainda. Três Invernos medonhos
Agitaram dos ramos três Estios em esplendor.
Três gentis Primaveras se tornaram Outonos,
Eu vi as estações em constante mudar,
Três perfumes de Abril queimados por três Junhos
Desde que então te vi; e ainda: igual frescor.
Ah! Porém, a beleza, sem passo percebido,
Como braço do tempo recua, rouba a forma;
E a tua doce cor, parecendo não mudar,
Varia na mudança, pode iludir-me o olhar.
     Para que tal não fora, escutai, vós, por nascer:
     Antes de vós nascerdes, o mais belo morrera.

William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Maio, Aventado, Maio

Maio é o mês mais belo, ultrapassando assim em beleza os restantes meses do ano inteiro. Quatro letras apenas compõe o nome deste mês que consolida uma Primavera há muito ansiada. Espantados ficamos com a subida da temperatura e o abandono da roupa que passamos a deixar nos armários. Adeus casacos e gorros nessa partida e um até pró ano. Eis que somos surpreendidos com tamanha fecundidade da natureza em redor, o irromper das flores em abundância, o despontar dos frutos e o irradiar da luz. Alegres ficamos na presença dos dias que permanecem maiores, dilatando o tempo ao sabor das horas, proporcionando crepúsculos inolvidáveis.
Agora que Abril parte e nos lega esta enorme promessa, abrimo-nos aos sentidos e à luz, espevitamos os aromas e odores, o gosto refina-se e aproveitamos por tactear a vida que pulsa, o desabrochar dos tecidos. O final de Abril já antevia em demasia a comparência dos cravos, anunciando também crisântemos, orquídeas, gladíolos e rosas, tal é a abundância, a fartura, e a riqueza floral. E depois deliciamo-nos com os frutos da época, procurando no mercado maçãs, ameixas, laranjas, ou o quintal de amigos para saborear as nêsperas, esse fruto que rebenta em polpa nos lábios e devolve o sabor desta primavera reiterada.
Só em Maio é que poderia existir um dia dedicado ao prazer do silêncio.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

É hoje na GZDB!

"Terra do Corpo"é apresentado às 22 horas!
“Num corpo sem janela há um quarto vazio
E nele o ar circula de fio a pavio
Num corpo há um quarto vazio

Num quarto sem janela há um corpo vazio
e esse está à espera que lhe puxem o fio
Num quarto há um corpo vazio

Cuidado com o Corpo vazio
Cuidado com o Corpo vazio”


in “Corpo Vazio”- Medeiros Lucas (participação de Selma Uamusse), letra de João Pedro Porto.

terça-feira, 26 de abril de 2016

"Terra do Corpo" na Galeria Zé dos Bois

A dupla Medeiros/Lucas estreia amanhã “Terra do Corpo”, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Depois da bonita viagem em pleno mar alto, com “Mar Aberto”, regressam a terra para medir o estado do corpo. Este disco é, sem dúvida, uma mensagem bem guardada que agora dá à costa para decifrarmos tema a tema, como quem sorve o líquido de uma garrafa. Pedro Lucas continuará a viajar com a sua guitarra baloiçante, qual Marc Ribot planante, aproveitando-se da magnífica companhia e do vozeirão misterioso de Carlinhos Medeiros.
 Está assim aguçada a curiosidade para este “Terra do Corpo” em público, o disco foi apresentado no início do mês de Abril, com letras do escritor João Pedro Porto. É tempo para ouvir como soam ao vivo:“Sina Saudade”, “Sístole”, "Safra de Gente" e o curioso tema “Corpo Vazio”, num jogo repetitivo de vozes e guitarra, desta feita com a lindíssima voz de Selma Uamusse, que também está convidada.
            Para concerto inaugural, “Terra do Corpo” promete ser mais um momento intenso e musicalmente bem composto deste navio insular, preenchido por diversos instrumentos em pano de fundo, contando ainda com os dignos restantes elementos do grupo para estas celebrações conjuntas: Ian Carlo Mendonza e Augusto Macedo

domingo, 24 de abril de 2016

Chegaram!!!

- Já pensaram em integrar as águas vivas na vossa ementa dos restaurantes locais?
-Sim, há muito tempo. O problema é que as pessoas não gostam.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Carta a Janeiro Alves num Outro Abril

Caro Janeiro Alves,

Acredito que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós mas sei agora que isso não foi possível. Os tempos, definitivamente, mudaram. Soube há dias que Janeiro Alves mandou retirar as obras de arte da Galeria onde a nossa amiga comum, Miriam Manaia, se encontrava a expor. Dizem as línguas pérfidas e fétidas que tudo ocorreu quando o amigo Janeiro ouviu pronunciar sob a forma de eco os termos “curadoria” e “curador”. O amigo Janeiro pensou que vinha a caminho um mestre de feitiços e magia negra e, muito antes que ele desatasse a incendiar tudo o que visse, decidiu esconder e proteger as respectivas obras de arte. Dado que estamos na presença de obras bastante valiosas, o amigo Janeiro tratou imediatamente de acautelar o seu futuro e a velhice, ficando assim na posse da obra mais cotada da exposição: “Peregrinos Contemporâneos”, que se encontra já na sua posse numa cave da capital, onde vai semanalmente pôr o colesterol em ordem com um queijo limiano.
Como eu o compreendo, meu caro amigo, todos gostaríamos de ter uma velhice sossegada. Quem sabe: um país de corais e tesouros ao virar da esquina? Uma vasta planície de Camélias Sinensis na Primavera, eu sei lá?  Acredito, isso sim, que talvez pudesse ser melhor o nosso presente. Muito melhor, certamente. Tudo menos este navio que vemos diariamente em plano inclinado. Há muito afundado por ganchos refinados de piratas que agora também escrevem papéis no Hemisfério sul. Sabe, tanto como eu, que sempre que abrimos a goela para esta proferir um testemunho de esperança, cai-nos de súbito uma pevide na garganta. Por isso, demora tanto para que a semente germine e dê flor. Consola-nos, portanto, ter amigos que passam o dia inteiro à beira-mar especados. As lembranças de gente até aos corredores na casa dos pais em dia de aniversário, ou quando tínhamos avós com relógios-bússola ou mapas imaginários. Ou ainda aquele tio que esteve no Ultramar e que agora é perito em filatelia, silvicultura e monocastas.
Acredito sinceramente que talvez um dia nos devolvam o êxtase de andar por aqui. Aquele eterno orgasmo patriótico, o sorriso cândido e gentil das raparigas quando passam ou simplesmente o odor das castanhas quentes no frio de Novembro. O que é um facto é que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós. Talvez, mas por agora o que me ocorre é simplesmente comer os filetes de peixe que se encontram neste tupperware que o meu querido amigo enviou recentemente.
  
Com elevada estima e consideração,

Doutor Mara

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sete Bicicletas

Gravura de Nuno Neves (Edições Serrote, 2012)

Ontem escrito numa parede da cidade

Gostava tanto de cinema que partiu para uma ilha. Ao fim de algum tempo, abriu um moinho gigante para mostrar filmes antigos. No final de cada filme oferecia chá de gengibre aos presentes. Conta-se que todos, sem excepção, acrescentavam mais qualquer coisa à obra que tinham visto.

sábado, 16 de abril de 2016

Carlos Medeiros na Miolo


“Periférica – Brainstorming Art”: A Centralidade de Cem Soldos!

          A Anda &Fala-Associação Cultural, em articulação com o Walk&Talk e com o apoio da EFA-European Festival Association, promoveu, no passado dia 14 de Abril, o seminário “Periférica – Brainstorming Art”, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Durante o dia foram oito as intervenções à volta das relações entre centro e periferia, incidindo a discussão sobre a emergência de um novo mapa geocultural e a criação artística contemporânea nos Açores. Parabéns, portanto, à organização por ter dado a conhecer o trabalho de Luís Ferreira, do Festival Bons Sons. Um exemplo extraordinário de como a partir de um festival de música se envolve uma pequena comunidade, dessacraliza a cultura, e faz com que esta seja alavanca e motor de desenvolvimento económico e humano!

Progresso

         “No Centro de Saúde Mental e Infantil, tínhamos dez ou onze equipas e fazia uma reunião por semana com cada uma delas, e uma vez por mês uma reunião geral com toda a gente. Essas reuniões eram às nove da manhã; das nove às onze. E as pessoas chegavam sempre atrasadas. Fiz várias coisas até que simplesmente escrevi num quadro,“Quem chegar depois da nove e dez é favor não interromper.” Começaram a ir a horas. As pessoas protestam quando é imposto, mas se for dito com jeito acabam por colaborar. E há outra coisa: a ideia do nosso governo anterior era a de que as sociedades progridem por competição. Não, as sociedades progridem por colaboração. Não é nos períodos de guerra que se fazem as grandes descobertas, é nos períodos de paz.”
          Entrevista de Carlos Vaz Marques a Coimbra de Matos, in Jornal Público, dia 21 de Fevereiro 2016.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

da Divina Comédia

Por mim vai-se à cidade que é dolente
por mim se vai à eterna dor,
por mim se vai entre a perdida gente.

Moveu justiça o meu supremo autor:

divina potestade fez-me e tais
a suma sapiência, o primo amor

Antes de mim não houve cousas mais

do que as eternas e eu eterno duro.
Deixai toda a esperança, vós que entrais. 

Dante, excerto inserido na "História da Curiosidade", de Alberto Manguel.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Humor nos Jornais

“Há treze anos, como há dez, como há quatro, como há um ano, como sempre, o palavreado é o mesmo, as mentiras, as intrujices, as patacoadas, todas as mesmas!
          Bandalheira vergonhosa, de partidos, de grupos, de gamela, de barrigas, de politiquice baixa, acusações uns aos outros, casacas voltadas a todas as horas, d´este para aquele sol-e-dó, muita miséria moral, muita estupidez, muito analfabetismo, muito patétola a fingir de alguém e a insdisciplina, a desordem, a imoralidade, o desaforo, a desgraçarem a sociedade portuguesa que já está sem conserto nenhum.”
in …Etc…, Jornal Humorístico de Ponta Delgada, 1924.
“Ora se é…mas não podem haver tolos, sem primeiro haverem discretos.”
in “A Calva À Mostra”, Sábado 5 de Janeiro de 1889.

             -Exposição de Jornais Humorísticos desde 1868 até 1974 na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Mar" de Tiago Miranda

Tiago Miranda, Pianola, 2013.
O mar em grego é uma palavra do género feminino e foi assim que os antigos helénicos começaram por  tratar desta força da natureza. Uma potência geradora e aglutinadora de vida. “O mar é” disse-me um dia o meu pai para calar aquilo, sobretudo com que o mar nos dá mas que também nos tira. O mar é, foi e será sempre, fonte de riqueza e inspiração neste país com tanto de mar como de lua, daí "o país de lunáticos" do Alexandre O´Neill. Para lá do peixe, dos recursos marinhos e da frota pesqueira, a nossa costa está repleta de praias e locais para nos dedicarmos ao sol, aos mergulhos, aos passeios, ao desporto, ao namoro, à contemplação. Foi isso que Tiago Miranda, repórter fotográfico do Expresso, quis fixar de forma quase diarística, num périplo costeiro de onde resultaram as imagens deste “Mar”. 
Ao longo deste particularíssimo e pulcro objecto, encontramos muitas praias, algumas bem conhecidas e outras menos, mas todas de igual relevância para o respectivo conjunto.  A beleza deste objecto é tanta que aumenta o desejo de viajar pelas praias da nossa infância e adolescência. 
Este livro de fotografias de Tiago Miranda contém ainda um poema de Rui Miguel Ribeiro (“Fez-se chamar com a fúria cava/ de uma onda ou a táctil cobertura/ de uma espuma”), sendo a revisão de Mariana Pinto dos Santos, tendo sido composto e paginado por Eduardo Brito. A tiragem, com a chancela da Pianola, foi de trezentos exemplares. 

Michelangelo Antonioni

Visione del silenzio
Angolo vuoto
Pagina senza parole
Una lettera scritta
Sopra un viso
Di pietra e vapore
Amore
Inutile finestra

Caetano Veloso

Romance de Nós

Estou à beira do mar,
estou à beira de ti.
Ardem no meu olhar
os sonhos que não vi.
Tudo em nós foi naufrágio,
não quisemos saber:
fizemos nosso adágio
do que não pôde ser.
Que resta do amor
a quem é como nós?
Envergonha-me pôr
em verso: «somos sós;
sós como amanhecer
às avessas do mundo;
sós como podem ser
as areias no fundo;
somos sós e sabê-lo
é negar o pronome
que de nós fez novelo
e por nós se consome». 

Luis Filipe Castro Mendes, in "Modos de Música".

Linda Martini: “Sirumba”

Quando neste Portugal contemporâneo, alunos do ensino secundário e seu professor encontram temas em comuns na sala de aula sobre canções rock e um filme do tempo do cinema novo português, é caso para afirmar que nem tudo se perde mas que tudo se transforma. Os Linda Martini conseguiram tal feito, que vai desde o período em que ensaiavam numa casa ocupada dos anos noventa, passando pelos concertos hardcore, até encherem há dias o Coliseu, acumulando um capital de simpatia e comunhão como poucos  conseguem. “Sirumba” está já em escuta e é também o tema de abertura deste novo disco de 2016. É uma canção em forma de hino, caracterizando-se pelas guitarras de forma dançante à procura de encontrar os diferentes espaços para cada um no sentido e vida presente: “Segundo toque/ E eu não vou Amor/ Faço gala/Eu quero é ser cantor/ Se eu chegar ao outro lado/ E voltar tudo para trás/ Não quero ser doutor/ Não quero ser doutor/ Não quero ser doutor/ Não quero ser doutor.” 

sábado, 9 de abril de 2016

Sala de Embarque (Caderno de Apontamentos)

Velho: Sim, sobre barcos. Se o assunto for futebol, não sei nem consigo dizer nada. Nadinha. Se pretenderem falar de barcos, estou disponível para falar convosco a noite inteira. (Puxa pela memória) Por vezes, também ia comendo amendoins. (Recordando-se) Entretanto, levantei-me e...comecei a caminhar. Foi aí então que dei conta que não tinha comigo o caderno. O meu caderno de apontamentos onde eu apontava tudo o que me ia acontecendo, histórias, rascunhos de poemas, textos evocativos, memórias. Naquele caderninho azul celeste estava a minha vida dos meus últimos três anos. Sim, é verdade...os meus últimos três anos estavam ali, bem como aquilo que eu pretendia fazer nos próximos três anos seguintes. Estarei a exagerar? Consegue perceber isso? Consegue entender o que é que se passou?

Ontem, escrito numa parede da cidade

Será possível escrever poesia depois dos Papéis do Panamá?

Um Provérbio

"A silva que há-de picar já nasceu com o picanço."

terça-feira, 5 de abril de 2016

Fazendo 105

Ler aqui: https://issuu.com/fazendofazendo
    
        Lídia Pombo afirma na mais recente edição do FAZENDO (105 números, que orgulho!) que o aparecimento do Novo Grémio pelo Teatro de Giz nasceu de um desejo: “um desejo de criar um espaço de partilha, que fazia falta – quanta falta!”. E é também este FAZENDO desejante que nos faz tanta falta. Nesta edição de Abril do jornal, desenhado pela Raquel Vila Arisa, a paginação da Susana Salema e também do Tomás Melo, conta com uma excelsa capa da autoria da Marina Ladreiro. Os temas versam a actividade cultural existente no arquipélago, com textos ligados à ciência, ao teatro, à música, ao cinema, à gastronomia, ao desenho, continuando a insistir (e muito bem!) no seu Fazendinho, ainda que desta vez sem o já habitual REBUS, para além de outros assuntos e temáticas. Dever-se-á, entretanto, dedicar uma especial atenção ao artigo de João Venceslau, conceituado crítico da nossa praça, a propósito das rotundas do além. Diz ele a determinada altura do seu pensamento avançado: "E assim nasceu uma rotunda, por causa de um poste, por causa da tomada de posse do senhor presidente." Será? Boas iluminações!

À Grande e à Portuguesa

       Gosto muito pouco dos meus contemporâneos quando pensam em grande, de forma descomunal, mania das grandezas, agindo depois de maneira desproporcional. Pensam e pensaram sempre muito alto, das cidades às artes, pensam sempre desmedidos, à patrão, como se costuma dizer. Cresci com estes meus contemporâneos a dar cabo lentamente dum país à beira mar plantado, primeiro com mamarrachos, rotundas, estádios de futebol, centros culturais e outros colossos de um país pobre, mas com ideias arrancadas à força ao primeiro mundo e agora confundidos com as estatísticas realistas do terceiro-mundo. E assim calados e aluados, silenciosamente, nos penitenciamos. Acobardamo-nos. E eu também sem o querer, porque fiquei afastado, também me sinto culpado. Foram prédios à beira-mar fora de escala, escolas de grande dimensão em que se misturam grandes com miúdos, edifícios faraónicos, rotundas sem pompa nem circunstância, urbanidade sem calma nem paciência, centros históricos arrasados e destruídos. Deste caldo cultural, gerado pelo novo-riquismo e o mau gosto, veio a prepotência, a arrogância, a incultura. E, claro, muita, muita parolice. E fomos todos, sem excepção, lentamente, perdendo a paciência. Prefiro, por isso, ainda hoje os que correm devagarinho,  os corredores de fundo em vez dos exibicionistas dos cem metros, ainda que muitas vezes pequenos, sem armar ao pingarelho, discretos, fazedores do seu percurso habitual e natural, descansando, por vezes, até caírem para o lado. E não muitas vezes sem holofotes, sem apoios, patrocínios ou foguetes. Não desarmam, aguentam, levam a água ao seu moinho. É por estes que eu hoje me quero bater, estar ao lado, ser cúmplice. Aqueles que, cultivando e lavrando o seu pequeno terreno, dão sinais dos melhores frutos, de brotar a melhor flor. Ah...raios e coriscos. Corajosos. Dão sinais de um tempo outro por vir.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Miolo da Rua de Pedro Homem

       
Galeria Miolo na Rua de Pedro Homem
Miolo é um novo ponto de paragem e observação na rua de Pedro Homem, no centro histórico de Ponta Delgada. Segundo reza a história, Pedro Homem foi escrivão do Ouvidor do rei D. João III, viveu e morreu por ali, caracterizando-se por possuir capacete ou adaga e terá sido este o introdutor de várias aves - falcões, cisnes e milhafres - na Ilha de São Miguel. A nova galeria que passa agora a existir no número 45 desta rua pretende ser, cinco séculos depois, mais um ex-libris de forte atracção e interesse, não só histórico, mas também cultural e turístico. E porquê? É que nesta rua já existe o restaurante vegetariano “Rotas”, o Hostel The NooK, o Bed and Breakfast “By Lapsa” e, para além de tudo isto, há também um cabeleireiro, um dentista e uma farmácia na esquina.
         Em Janeiro deste ano a Miolo inaugurou a sua primeira exposição de fotografia, e que é  o resultado do seu primeiro mês de existência e abertura ao público. Aliás, quem descobriu, entretanto, o espaço passou de imediato a fazer parte da exposição – ainda que de forma livre e espontânea vontade – pois bastava deixar-se fotografar em lugar próprio, à entrada da galeria. A exposição inaugural intitulou-se “Work in Progress” e mostrou a todos os que visitaram aquele espaço e viram esta ideia e conceito em movimento, descobrindo assim as diferentes fotografias expostas consoante a passagem dos dias, aproveitando para de algum modo conhecer o seu interior e o que esta dupla fundadora tem para “oferecer”.
        Vitor Marques e Mário Roberto pressentiram ser este o momento para combinar as capacidades criativas de ambos e contemplarem a Miolo, enquanto editora, aliada ao projecto Malavelha Photografia, que recuperará assim os primórdios da revelação fotográfica, demonstrando o que o passado das imagens nos pode hoje ainda oferecer. Esta ideia antiga foi posta em prática com um risco diminuto por estes assumido, conscientes que estão que após a “Miolo” outras iniciativas semelhantes irão ter lugar no "miolo" citadino.
         Ao longo deste ano, a Miolo tem já várias actividades agendadas, pretendendo, em primeiro lugar, funcionar como espaço de galeria de fotografia e ilustração, seguindo-se à exposição de Paulo Prata, autores como Carlos Medeiros, Luísa Aguiar, Ian Allaway entre outros, podendo ainda os visitantes da galeria adquirir vários múltiplos de artes de artistas conhecidos da nossa praça – Tomaz Borba Vieira, José Nuno da Câmara Pereira, França Machado, Pedro Cabrita Reis, Alice Geirinhas, Inês Ribeiro, André Laranjinha ou simplesmente a Agenda Luz, de vários criativos micaelenses, para o ano de 2016.

Ontem, escrito numa parede da cidade

O pintor inquieto sentia-se impotente a pintar o que quer que fosse. Saiu de casa a pensar que se juntasse todas as cores surgisse uma só cor que não tivesse visto ainda. 

nunca se diz adeus

não dá melancolia, é uma saudade concreta, nada tem de nostalgia, ninguém se esquece de nada, a memória arrasta viagens, credos, angústias, glórias, a nossa fatia de vida lembra-se com força para marcar a fogo uma alegria inatingível e próxima como a fúria da água, tão distante como os passos numa órbita à descoberta de uma vocação

não estamos por ordem, apenas somos diferentes, há lixo da época ouro hoje, deitam-se fora coisas discretas da altura que agora nos deixam a pele em arrepio, fica o pavio duro e rígido, nem na morte (ou muito menos na morte) alguém é abstacto e até já nos esteja destinado o futuro

nada é impossível ou verosímil quando vem ter connosco sem pedir licença ou fazer cerimónia, e o amor, o amor, a essência mais perene, dura o que durar, para além de nós se lhe aprouver, somos apenas uma personagem – entre milhões – atentos ao momento exacto da nossa voz, somos líricos, somos tenazes, devemos louvar esse legado e bem querer-lhe.

nenhuma palavra ou imagem é definitiva, nenhum testemunho desaparece, nenhum gesto passa por aqui em vão, o tempo tudo regista e só os homens dão por isso. O mais frequente é o mundo alarve que nos cerca, alimenta e devora, não nos dar muita importância e um dia nos vir buscar quando já não estivermos à espera

nunca se diz adeus

Joaquim Castro Caldas in “Mágoa das Pedras”, Deriva Editora.

Canção do Mar Aberto

Onde puseram teus olhos
A mágoa do teu olhar?
Na curva larga dos montes
Ou na planura do mar?
De dia vivi este anseio;
De noite vem o luar,
Deixa uma estrada de prata
Aberta para eu passar.
Caminho por sobre as ondas
Não paro de caminhar.
O longe é sempre mais longe…
Ai de mim se me cansar!...
Morre o meu sonho comigo,
Sem te poder encontrar.

Armando Côrtes-Rodrigues, in Planície Inquieta.

sábado, 2 de abril de 2016

Santa Clara à Tardinha

Cai a luz sobre os teus olhos
estupidamente verdes enquanto
inalo maresias do último Março
canto Primaveras fortuitas por cumprir
assim o calor dos dias ampliados
encubro um disfarçado contentamento
e talvez realize festa a preceito
numa quase infelicidade arquitectada

Cai a luz sobre os teus olhos

estupidamente verdes enquanto
absorvo fogos deste celeste céu
calo todas as mágoas e as pedras
estorvos antigos por transpor
conquisto um aceno e isenção  
e porventura me concentre
nessa mínima alegria possível

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Não é Mentira, é Mesmo Verdade: uma Missiva de Janeiro Alves no Primeiro de Abril!

Caro Doutor Mara,
Vejo que as suas fontes de informação há muito passaram o prazo de validade, e actualmente não passam de “lixo”. Temo que esteja a ser ludibriado pelas companhias e infectado pelos andrajosos recantos que frequenta, já para não falar dos malefícios dos vícios que não consegue largar. Todos estes factores levam-no a formular cenários imaginários que em nada correspondem à minha realidade. Não fossem estas cartas pessoais, e as minhas credenciais arderiam em fogo posto premeditado, ainda que revestido de uma certa negligência atenuante. Não me escuso porém a incluir-me na culpa gravosa destas inverdades, pois o facto de não o pôr a par das minhas inquietações mais amiúde também contribui para essas suas construções fantasiosas. Suas, e dos seus amigos.
Numa situação normal, seria uma perca de tempo relatar-lhe o meu quotidiano actual de forma detalhada, mas a circunstância assim o exige. Pois fique sabendo, Dr. Mara, o que tenho feito nos últimos meses. Acordo por volta das 9 da manhã, visto o fato de treino e vou ao café. Aproveito para ler a bola, enquanto bebo um café acompanhado de um pastel de nata. Com o estômago já forrado, bebo duas ou três minis enquanto discuto com o empregado os acontecimentos da última jornada. De seguida vou ao mercado, e compro dois peixes, um para o almoço e outro para o jantar. Às vezes dois bifes, um para o almoço e outro para o jantar. Depois do almoço dedico-me a actividades lúdicas, tais como rever a minha colecção de selos ou fotografias antigas, lavar o carro com a mangueira, alimentar com os restos do almoço as minhas plantas carnívoras do jardim, ou simplesmente ver vídeos do México 86. Ao fim da tarde nunca perco o Preço Certo em Euros, e depois disso o habitual itinerário – novela, telejornal, jantar, novela. À noite vou à tasca do Victor, que tem um bom bagaço das Beiras, e jogo uma suecada com amigos. De seguida dirijo-me aos meus aposentos, visto o meu pijama às riscas, e deito-me. Nunca adormeço antes de ler duas ou três páginas do meu livro de auto-ajuda, e de engolir duas cápsulas de Cálcio Mais.
Como vê, esse indivíduo dissertador de Alfama que se pavoneia pelos salões da intelectualidade Lisboeta está longe de ser Janeiro Alves ou algo que se pareça. É certo que tenho vindo a alterar os meus hábitos, mas lá terei as minhas razões, e obviamente não lhas poderei transmitir, sob pena de se esvaziar por completo a capa de incerteza que paira sobre a minha existência.
No que respeita aos desinfectantes intestinais e paneleirices revigorantes, aconselho-o a experimentar uma boa feijoada à Transmontana com vinho tinto da Bairrada e vai ver o que é vigor e desinfecção! Uma limpeza. De qualquer forma, sei que apesar destas mariquices de gengibre, o Doutor se trata bem. Gosta de dar ao bigode, como se costuma dizer. E é por isso que lhe envio à parte, num tupperware, os seus filetes de peixe favoritos, adquiridos no inigualável Pitéu da Graça. Espero que aprecie.
Por fim, não poderia deixar de referir que envidarei todos os esforços para estar presente na inauguração da exposição da nossa muy amiga Miriam Manaia, pelo que se nos encontrarmos, vêmo-nos concerteza. Apesar das suas obras mais emblemáticas e por si referidas, vou propositadamente para admirar de fascínio e estupefacção aquela que para mim é o ex-libris das suas obras, o “avultado desejo de cobrição”. Há anos que a tento adquirir. Quanto ao seu périplo pelas universidades do país, é uma óptima notícia, pois enquanto andar ocupado com essas matérias não terá tempo para espalhar boatos espalhafatosos e alarves sobre Janeiro Alves, que é como quem diz sobre a minha pessoa.
Dito isto, e porque a missiva já vai longa, sublinho que o meu caro amigo ainda vai a tempo de reverter o processo de degradação da minha imagem pública além-mar. Não me leve a mal por insistir nesta questão, mas será fundamental para a novidade que lhe quero dar – Pretendo candidatar-me a Presidente da República Portuguesa.
Com elevada estima e sentido de estado,
Janeiro Alves

5 x Novalis

-“Os órgãos do pensamento são as partes genitais da natureza.”
-“A vida é uma doença do espírito, uma acção apaixonada.”
-“Os jornais são já livros feitos em comum. “O escrever em comum” é um sintoma interessante que faz prever um grande aperfeiçoamento na arte da escrita. Talvez um dia se escreva, se pensa, se aja em massa. Comunas inteiras, países, empreenderão uma obra.”
-“Muita gente se agarra à natureza porque, como meninos mimados, têm medo do pai e procuram refúgio perto da mãe.”
-“Pode haver momentos em que um abecedário nos parece poético.”

Frederico Lopoldo de Hardenberg dito Novalis in “Fragmentos” – Tradução de Mário Cesariny.