"Recorda-me que talvez não seja preciso reestabelecer a loucura das citytrips e das itinerâncias desenfreadas de espectáculos para continuarmos a ser um mundo global, mas também não temos de nos fechar em comunidades isoladas sem contacto com os nossos vizinhos, os que vivem na mesma rua, no país ao lado, ou no próximo continente. Se podemos utilizar utilizar um telefone para vigiar os movimentos, medir a temperatura ou encomendar uma pizza, o mesmo aparelho também nos permite fazer transferências bancárias para amigos em apuros e para contas solidárias, denunciar desigualdades nas redes sociais, ou incluir aplicações que nos permitam regular o aquecimento em casa, e distribuir a energia renovável que captamos dos nossos telhados, como advoga há décadas Jeremy Rifkin, um economista, sociólogo e activista norte-americano, que nem sequer é muito radical.
No momento em que foi decretado o estado de emergência nas condições em que hoje vivemos, oferecemo-nos tudo o que precisamos para uma derradeira mudança. Podemos tornar-nos num Estado mais vigiado, mais autoritário, menos livre, ou podemos relacionarmo-nos de forma diferente com a geografia e com o tempo, perguntando-lhes o que se passa e como podemos seguir juntos a partir daqui.
Temo, no entanto, que nos habituemos à peste, como sempre nos habituamos a tudo. Quando já não parecer obsceno não falar só de saúde, voltaremos a falar de economia, capitalizando a origem grega da sua palavra, oikos, que quer dizer lar, e a pouco e pouco, de forma sorrateira, iniciaremos a recruta de todos aqueles que manterão, não o mundo a comer e a funcionar tecnicamente, mas o sistema que nos levou até aqui. A esta quarentena. A este medo de respirar. Até tudo começar e acabar mais uma vez. Se assim for, poderá ser esta a oportunidade perdida que o nosso planeta nos deu."
Patrícia Portela, in Jornal de Letras, Maio de 2020.