sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

À Procura da Biblioteca Ideal


As bibliotecas são, por vezes, lugares demasiado solenes, cerimoniosos e, porventura, ainda bem. Uma biblioteca é uma casa de cultura viva, guardiã máxima do saber e da memória e, porque não dizê-lo, ponto de descoberta de mundos novos, espaço, portanto, de vários encontros entre quem lê e quem escreve, impulsionador da troca de saberes e de experiências e, quem sabe, um lugar propício ao aparecimento de novas vozes literárias, podendo estas ir de encontro ou não ao que sentimos e queremos deste mundo em que vivemos. Esperemos, entretanto, que novas utopias brotem.
A memória de infância que guardo de uma Biblioteca não é a melhor. Estou ainda a ver uma senhora bibliotecária numa minúscula sala com livros, ali com os seus cabelos brancos encaracolados, o rosto duro e fechado, os seus olhos negros enfiados pelos óculos de vidro de garrafa, a instigar terror quando os livros passavam o prazo de entrega. Era vê-la aos berros a ver se envergonhava os faltosos, a controlar a ficha dos incumpridores e a verificar o estado dos livros um a um (maioritariamente, banda desenhada), chegando mesmo a ruborizar tudo e todos, só para que víssemos o sacrilégio que tínhamos acabado de cometer, fosse aquilo que fosse. Devo ter demorado alguns anos até voltar a entrar numa biblioteca pública.
Os anos passaram e, à volta das cidades portuguesas, as novas bibliotecas abriram-se aos novos tempos e diversificaram a sua actividade, imprimindo diferentes funcionalidades, deixando assim de ser exclusivamente depósitos de livros ou consulta de documentos, para ser também lugares de estudo ou pesquisas de livros, deslocando espaços para a fruição e prazer associado à leitura, tais como salas  dedicadas à Hemeroteca (material periódico) ou videoteca (cinema e documentários), para além de outras salas dedicadas às crianças, com leituras de histórias e conto infantis, preparando assim novos e futuros leitores! As bibliotecas poderiam ter também um espaço consagrado ao absoluto silêncio, à leitura e introspecção pura, onde nem sequer fosse possível ouvir a voz humana.
Ultimamente, partilho com frequência e com muitos outros a Biblioteca Municipal e Arquivo de Ponta Delgada, em São Miguel, apreciando deste modo a beleza e largueza do seu edifício, trata-se de um projecto de recuperação do antigo Colégio Jesuíta, contém no seu interior diferentes espaços, sendo visitada diariamente por centenas de estudantes e investigadores, possui pátios exteriores muito bonitos (um deles, conta com uma escultura do João Cutileiro). Proporciona também um agradável serviço de bar, com uma gastronomia cuidada e diversificada e um serviço de empréstimo de livros vasto e bastante actualizado, pois como diria o físico, Carlos Fiolhais, “investir em belos livros é investir na beleza e a beleza é sempre consoladora”. Consolemo-nos, pois!

...

Con los dias contados
chaval, así vivimos
todos. Esperando
a que nos tachen
de la lista. Distrayendo
la espera con tragos
y canciones. No hay más.
Puedes llorar o morirte
de risa. Como prefieras.

Karmelo C. Iribaren

Açores, seis anos depois...

           Eu era novo, demasiado novo, quando vim aos Açores pela primeira vez. Foi um pouco depois dos célebres protestos estudantis na República Popular da China e um mês antes da queda do muro de Berlim. Passaram-se, portanto, vinte anos, pude confirmá-lo agora com as fotografias guardadas no silêncio da gaveta. Foi amor à primeira vista. À semelhança dos amores duradouros, há dias com maior paixão e intensidade, dias claros e luminosos, outros nem por isso. Quando aqui estive, em 1989, ainda não tinha lido o livro de Raul Brandão “As Ilhas Desconhecidas”, nem o arquipélago açoriano era considerado o segundo lugar dos melhores destinos do mundo no turismo sustentável (segundo a revista “National Geographic Traveler”). Porque nasci à beira-mar, fiquei com uma memória viva desse primeiro encontro, daí a nunca mais ter esquecido foi um passo de gigante ou o tamanho da montanha do Pico.
           Há duas décadas fazer uma viagem a quatro ilhas dos Açores: Faial, Pico, Terceira e São Miguel, foi um profundo acaso na vida de um adolescente. Tudo aconteceu após ter escrito um artigo para a Antena 1, o programa “Os Jovens Encontram a Europa”, sobre um tema que gostaria de ver discutido no Parlamento Europeu: o desemprego. Três meses depois, tive direito a um prémio. O prémio foi uma viagem/visita com tudo pago ao arquipélago dos Açores durante oito dias, com estadia incluída. Era uma comitiva de estudantes muito novos: portugueses, espanhóis, italianos e alemães para além dos organizadores, todos eles ligados às emissoras radiofónicas dos países organizadores do respectivo concurso. Com a bagagem retida em Lisboa, a primeira ilha a visitar foi o Faial com o seu vulcão dos Capelinhos, o Cabeço Gordo, a Caldeira e a passagem natural pelo Peter Café Sport. Tudo isto superou a possível irritação com os haveres, tendo dado origem a uma grande aventura até ao aeroporto em carrinha de caixa aberta, um dia depois, dada as constantes alterações climatéricas que se faziam sentir e as oscilações naturais do percurso, pois nem tudo estava naquela altura alcatroado.
       Recordo-me, muito para lá do postal turístico, da presença esmagadora do verde enquanto reflexo da força e poder dos elementos naturais: a abundância da água que caía, a irradiação da luz e as suas variações cromáticas e, claro, as nuvens em constante mutação. E, evidentemente, a visão do Pico que também naquele momento nos enchia a vida…para além dos licores, que lá fomos beber dois dias depois. Os Açores assemelhavam-se, portanto, à “policromia orgiástica”, que mais tarde viria a descobrir no livro de Brandão. Os Açores eram assim a infância renovada, a possibilidade de reencontrar uma natureza ainda intocável e virgem que, para desencanto de muitos continentais, foi desaparecendo nas terras do litoral e, quem sabe, no interior. E, embora hoje se sinta um sentimento de “continentalização”, é o progresso dizem-nos, a paisagem é perene e imutável, continuando por isso sempre bela e de fácil contemplação.
            Os Açores, para qualquer ser melancólico em crescimento, prolongavam e prolongam o espelho. Pode-se afirmar que, passados tantos anos, os Açores continuam a ser lugares imaculados de silêncio e de natureza rica na sua expressão mais vital e fulgurante, os tais “montes de fogo, vento e solidão”, descritos pelos primeiros navegantes. E, talvez por isso, há quem goste de contemplar e se sinta bem por aqui.

in "Re(faial)izar", Boletim Cultural Fazendo (https://issuu.com/fazendofazendo), Janeiro de 2010

Ontem, escrito numa parede da cidade

Não devia ser permitido ir a uma biblioteca de barriga vazia.

Brumário