sábado, 7 de dezembro de 2013

Exaltação da Cinefilia

“Queria partilhar consigo, Caro Doutor Mara, sete anotações que tenho vindo a compilar sobre a sétima arte: Um filme é sempre pessoal e intransmissível. Pode-se ver acompanhado, mas a sua assimilação é um acto individual, pois os olhos vêem o mesmo, mas observam coisas diferentes. Os críticos de cinema são para mim os caixotes de lixo de Almada Negreiros, despejados à porta dos que sofrem da impotência de criar. As grandes produções que têm o intuito do lucro, são um ludíbrio para o espectador pelo vazio da sua espectacularidade Não é verdade a afirmação de que o cinema morreu no século passado, como muitas vezes ouvi. É que o cinema do passado, o tempo já se encarregou de filtrar. Na contemporaneidade, somos confrontados com a amálgama experimental Não existem bons ou maus filmes, existem filmes que gostamos, e filmes que não gostamos. Um filme aclamado não serve para nada, na medida em que reúne consensos. A música existe porque existe cinema, porque o cinema é a vida, e a música é aquilo que não o deixa morrer”                                              
Janeiro Alves
"Tirez sur le pianiste"de François Truffaut(1960)
       
     Tudo leva a crer que os lugares da cinefilia estão a mudar. A passagem de cinema autoral a altas horas da madrugada nos canais do costume e com os cinemas emblemáticos das cidades a desaparecer ou destinados a consagrar ou a celebrar os filmes que estão a dar, há, portanto,  outras pessoas dispostas a mostrar e dar a conhecer outras imagens e novos imaginários cinematográficos. Gente que não se importa de se sentar em cadeiras na rua ou estar sentada em poufs ou sofás em galerias e bares para assim poder dar a ver filmes antigos, a cores ou a preto e branco. Foi assim que esta semana foi possível ver o segundo filme do jovem François Truffaut na Galeria Arco 8: “Tirez sur le pianiste”, de 1960, que tem como actores Charles Aznavour, Marie Dubois, Nicole Berger, Michèle Mercier  e conta ainda com uma banda sonora notável, já que ouvimos o Boby Lapointe cantar ao vivo o “Framboise” ou ainda escutar nos minutos finais o “Dialogue d´Amoreux” cantada por Félix Leclerc e Lucienne Vernay. O filme resume-se à história de Charlie Kohler que é pianista num bar recôndito de Paris e que tem uma empregada que está enamorada por ele. O irmão deste é perseguido por dois bandidos: Momo e Ernest. De seguida, descobrimos que o seu verdadeiro nome é Edouard Saroyan e que se trata de um executante talentoso que desiste de viver quando a sua mulher se suicida. François Truffaut exerce tantos anos depois uma frescura e vitalidade, para além de  uma excelente direcção de actores e uma sagacidade incrível para falar de coisas sérias de forma tão curiosa e jovial, o que não deixa de ser contraditório pois o filme foi um fracasso de público e os jornalistas cheeqaram  mesmo a decretar o fim da nouvelle vague.  

nota informativa I

recortas em arestas de voz
o ar salgado da manhã
e embalas nas mãos a acidez do sol

a vida transpira-se de calor
em seus contornos de fumo e de fogo
moldando dentro de si
o domínio dos impérios de dor

ouve - o silêncio segrega-te para fora
da bruma das freguesias seguras
procuras o rosto sonolento dum salvador
tu és uma casa assaltada - não tenhas dúvidas
todos os gestos esculpidos da brisa te arrombaram

não há utilidade em conhecer palavras
tua boca move-se com a lentidão das portas à noite
ou com a monotonia do lume que te paseia nos olhos
continuas a procurar
as sílabas que te levem ao derreter dos versos
ou ao presságio da saliva dos espelhos

recolhamos este momento:
somos os filhos dos vasos sanguíneos
nos gritos perpétuos das pétalas

Leonardo Sousa in "Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida", Letras Lavadas edições, 2013.