quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um estado de imperfeição



Na rugosa espiritualidade de Angra aberta. Não estava ninguém. Só solidão, silêncio e dragoeiros fechados. Voltaria amanhã se estes se cobrissem de brisa e de seiva. Quando se acerta em cheio no sulco da terra eis a devida recompensa. Presta-se ao sofrimento, dilui-se na bruma, nunca merecida. E no entanto o aconchego apresentava-se em linha, num tronco por rasgar, num carreiro indefinido. Nada é seguro. Tudo me faz querer voltar a cada momento a essa desenvoltura, como um segredo que nasce e o sol fosse breve e subtil na sua incandescência que se compõe de eloquência hábil e transbordante. Enganas-me sempre com a convulsão infinita pois espero que a mensagem seja fugaz e legível. É pomba morta e a língua deixasse de existir entre nós. Recomeçávamos sempre de um requinte inventado e sofrido pela involuntariedade sentida: o padecimento e a esperança. Queríamos acreditar. Nada me levanta as certezas a não ser agora a tradução de um manifesto vivido a correr. Aos prantos. Numa aflição súbita. Entretanto, satisfaço a curiosidade formigueira e aceito por agora a mágoa. Instinto ardente e aliciante sem que alguém traduza este eterno desencanto. A chama apagou-se e não me sinto capaz de me oferecer em geometrias variáveis e confusas aos novos caminhos do vento. Já nada faz sentido e viajo até investigar a possibilidade que cabe num pequeno bolso, o resto é difícil apreender do mundo, em desconfiança completa, a felicidade gerada a desilusão de haver esquecido o gesto em si. E assim a dor bate à porta. Outra vez. Vento despedaçante, água que cobre, neblina que cega. O mal já foi feito. E ainda há o vinho que é um amigo das noites sem nuvens, o encanto da cidade adormecida, ausente, despovoada. Nos membros espessos, extenuados, sinto já o peso da viagem que é um ensejo e é um templo de carência que pede há tanto tempo povoamento. Quanta beleza, quanta riqueza e pobreza conjugadas. Não sei porque me rio e deixo transparecer uma cândida nostalgia. Saudades de uma coisa que nunca vivi sem consequência do desespero habitado e secular. A pensão do desamor é já ali e a mente escorrega, desliza, e permite dizer que vão estar cá todas em plena comunhão da luz quando partir. Amanhã ainda é invernia e à noite iremos percorrê-la em farândola aventura. Basta. Estou cansado demais para que isto talvez possa ser uma forma simples de existência e ficam escolhas e letras numa madrugada de chuva que cai incessantemente. Esmoreço a pensar demais e a escrever tão pouco e raramente me adianta esperar nem desesperar ao revés de tudo aquilo que me foge como um pássaro e devagar acreditar. Como se lentamente viesse a morte numa suave contagem decrescente e assim aumentasse de feição o desespero de nada ter conseguido e continuar serenamente idêntico ao meu ponto de partida este estado de contínua imperfeição.

PS - Escrito a partir do mote dado por um aprendiz de arquitectura da Old School.

Povo que Canta

      “O mundo é sempre assim: uma surpresa. As pessoas...ou melhor, os princípios e as verdades não podem ser tomados como coisas a priori. Pode-se sempre dar a volta, são sempre diferentes daquilo que pensamos. O problema é que é sempre preciso um espírito de criatividade e aventura. É preciso saber aproveitar o que a vida nos traz. Aproveitar uma paixão quando ela surge, como aconteceu comigo em relação à música. De facto, não posso viver sem música.”

Francisco D´Orey (produtor musical do Povo que Canta) in Filmografia Completa de Michel Giacometti. Coordenação geral de Paulo Lima.