Caro Doutor Mara,
Estou ao corrente dos últimos
acontecimentos insulares onde o meu caro amigo está sempre na première como protagonista de várias
peças e peripécias, um fato asas de grilo que lhe assenta sem pregas nem vincos
nessa sua morfologia burguesa, não fisionómica mas em aparência, dois conceitos
que se assemelham, sendo porém quase antagónicos. Mas não observe nestas
palavras qualquer toada crítica, ou ensejo satírico (muito menos deboche). Se o
fizesse, estaria certamente a expor-me a idêntico trato, contrariedade a evitar
devido a outras situações que tenho de resolver até ao natal. Ainda assim, e
considerando até bela e instigante essa sua incursão pelo lado ilusoriamente
iluminado da noite, espero que não ceda nas suas convicções, dada a exposição
potencialmente infecciosa a fenómenos de populismo e inocuidade. Desejo
manifestamente que o Doutor Mara se aguente firme, agarrando-se às pedras do
cais para não ser levado pela onda.
Por aqui, sou este espaço que ocupo.
No sonho, um campo vasto com espécies exóticas e maciços montanhosos ao fundo. No
corpo, apenas uma geografia confinada à velha secret ária deste covil. Os dias mal dormidos esvaem-se por entre os
dedos que lutam escrevendo. Transformei-me num escaravelho metafórico de
tamanho familiar, e quando penso movo as antenas. A cadeira já tem a forma do
meu corpo. Nos meus extravagantes sapatos italianos crescem agora pequenas
plantas artificiais, e já nem o ar que respiro se renova. A vida orgânica nesta
sala adquiriu um estado geométrico, rígido. Apenas as antenas continuam a
movimentar-se, e a mão a escrever. Compro tudo através do computador, que um
escaravelho deste calibre não pode sair à rua! A ordem sai da minha cabeça, vai
para o computador, passa para a internet, depois para a loja, o banco diz que
sim, e já está. Depois é aguardar, enquanto puxo o lustro da minha carapaça
castanha e abro mais uma garrafa de Macieira. Uma vida descansada e bem
refastelada, dirá o Doutor Mara do alto dessa euforia insular… Mas olhe que
não, Doutor… olhe que não. É certo que tenho a cabeça limpa e arrumada, com os
assuntos devidamente catalogados, com índice remissivo e cronológico, arquivo
morto, sala de estudo, e todo um departamento de novas ideias, onde actualmente
se trabalham os conteúdos para as grandes “Conferências da Fajã”. Mas eu vivo
dentro da minha cabeça, Doutor Mara, o que me causa bastante transtorno. Não
imagina o transtorno que é esta ausência terrena.
Mas enfim, perdoe-me este desabafo,
pois nem sequer era a intenção desta carta. Escrevo-lhe para saber como está de
finanças. Precisa de dinheiro emprestado? Sabe que pode sempre contar comigo,
no que puder ajudar. Bom, provavelmente não precisará, pois sei que sustenta
essa sua vida folgada com uma boa maquia que recebeu de herança familiar. Mas
já que estamos a falar deste assunto, a mim até me dava jeito algum, sobretudo
porque tenho a minha garrafeira praticamente extinta, o que constitui um
cenário desolador. Por outro lado preciso de mandar arranjar o meu fato preto,
pois tenho um tio quase a morrer. E se sobrar pilim, ainda queria comprar um
ventilador de ideias em segunda mão. Poderá enviar o cheque por correio como de
costume, ou se lhe der mais jeito, efectuar transferência bancária. Como forma
de agradecimento prévio, seguiu já hoje por correio azul uma embalagem dos
melhores filetes de peixe da capital. Para além da sua consistência admirável,
poderá esgaravatar à vontade que não encontrará uma única espinha.
Despeço-me por fim sem mais
delongas, pois tenho de ir dar comida ao cágado. Deste seu velho amigo, também palhaço,
desejos de enorme sucesso, e um abraço.
Janeiro
Alves