Amigo Doutor Mara,
Espero que esta carta invernal
lhe aqueça o coração, ao proporcionar-lhe uma leve comoção própria dos dias
mais subterrâneos, onde nos tornamos mais sensíveis aos pequenos prazeres da
existência. E é assim que sem precipitações e empurrados pela fulgurância do
tempo, entrámos no pré-Natal, época de catarse consumista e histeria familiar
embrulhada em lacinhos vermelhos, que irrompe pela doce letargia invernosa
fechando o ano tal como ele começou, num movimento circular. Não poderia deixar
de lhe escrever, tendo em conta que preparo já a minha habitual retirada de
Janeiro, pelo que é muito provável que só tenha notícias minhas em Fevereiro,
se até lá não for atacado por ursos. Este ano escolhi precisamente um local
onde pudesse evitar o confronto com animais de grande porte, mas já se sabe, o
azar persegue e esconde-se à espreita… Como também é já habitual, não poderei
revelar-lhe nesta fase onde irei estar em Janeiro, pois apesar de depositar uma
sólida confiança em si, desconfio que possa estar a ser observado por forças
antagónicas (não entre si). Tendo em conta as peculiaridades do meu destino,
seria necessária uma improvável combinação de factores para que lhe pudesse
escrever de lá. Por isso já sabe, se lhe escrever em Janeiro será certamente
uma carta extraordinária, algo inusitado no espectro da literatura epistolar.
Mas voltando ao Natal, gostaria
de fazer uma pálida ideia que fosse de como tenciona passá-lo, se sozinho ou em
companhia, se debaixo de umas palmeiras a beber Martini Bianco com azeitona ou
na lareira a embriagar-se com vinho barato e a contar histórias
marítimo-turísticas, se engalanado com asas de grilo e calças vincadas ou de
fato de treino da rebook, se dedicado
à leitura, se a cantar, se a fazer danças africanas numa casa de pasto, enfim…
pode-me dizer sinceramente, pois vindo de si já nada me surpreende - à excepção
de algumas situações. Espero acima de tudo que consiga o bolo-rei do ano
passado (em termos de qualidade, diga-se), para que possa juntamente com os
seus, encetar o habitual e extenso elogio aos mestres pasteleiros, poema de
exaltação familiar e momento alto da sua noite de consoada. Na impossibilidade
de lhe enviar os habituais filetes de peixe, remeto-lhe em ambiente
acondicionado uma garrafa de Macieira e outra de Raposeira, já a contar com o
Natal e a passagem de ano se não houver lugar a alarvidades.
Quero-lhe afiançar que o Doutor
Mara é o meu único amigo, fora aqueles mais chegados e um ou outro que ainda
não conhece, e que nutro por si uma grande admiração e respeito. Por si não
rebolaria com uma vara de porcos na lama de uma pocilga, mas interromperia
imediatamente um almoço da “Confraria dos Excursionistas de 86” para o ajudar
no que fosse preciso. Apesar de tudo, o ano que agora balança no fio da navalha
leva consigo algumas tensões que de certo modo deterioraram a nossa relação.
Quero portanto aqui deixar o desejo de que o ano de 2018 nos traga um
entendimento mais profícuo e o apetecido sucesso internacional das Conferências
da Fajã. Para que isso aconteça, basta que o Doutor Mara acabe de vez com essa
sua teimosia.
Com
espírito natalino e cristalício,
Janeiro Alves