sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A Natalícia Missiva de Janeiro Antes do seu Regresso em Fevereiro

Amigo Doutor Mara,
                
               Espero que esta carta invernal lhe aqueça o coração, ao proporcionar-lhe uma leve comoção própria dos dias mais subterrâneos, onde nos tornamos mais sensíveis aos pequenos prazeres da existência. E é assim que sem precipitações e empurrados pela fulgurância do tempo, entrámos no pré-Natal, época de catarse consumista e histeria familiar embrulhada em lacinhos vermelhos, que irrompe pela doce letargia invernosa fechando o ano tal como ele começou, num movimento circular. Não poderia deixar de lhe escrever, tendo em conta que preparo já a minha habitual retirada de Janeiro, pelo que é muito provável que só tenha notícias minhas em Fevereiro, se até lá não for atacado por ursos. Este ano escolhi precisamente um local onde pudesse evitar o confronto com animais de grande porte, mas já se sabe, o azar persegue e esconde-se à espreita… Como também é já habitual, não poderei revelar-lhe nesta fase onde irei estar em Janeiro, pois apesar de depositar uma sólida confiança em si, desconfio que possa estar a ser observado por forças antagónicas (não entre si). Tendo em conta as peculiaridades do meu destino, seria necessária uma improvável combinação de factores para que lhe pudesse escrever de lá. Por isso já sabe, se lhe escrever em Janeiro será certamente uma carta extraordinária, algo inusitado no espectro da literatura epistolar.
                Mas voltando ao Natal, gostaria de fazer uma pálida ideia que fosse de como tenciona passá-lo, se sozinho ou em companhia, se debaixo de umas palmeiras a beber Martini Bianco com azeitona ou na lareira a embriagar-se com vinho barato e a contar histórias marítimo-turísticas, se engalanado com asas de grilo e calças vincadas ou de fato de treino da rebook, se dedicado à leitura, se a cantar, se a fazer danças africanas numa casa de pasto, enfim… pode-me dizer sinceramente, pois vindo de si já nada me surpreende - à excepção de algumas situações. Espero acima de tudo que consiga o bolo-rei do ano passado (em termos de qualidade, diga-se), para que possa juntamente com os seus, encetar o habitual e extenso elogio aos mestres pasteleiros, poema de exaltação familiar e momento alto da sua noite de consoada. Na impossibilidade de lhe enviar os habituais filetes de peixe, remeto-lhe em ambiente acondicionado uma garrafa de Macieira e outra de Raposeira, já a contar com o Natal e a passagem de ano se não houver lugar a alarvidades.
                Quero-lhe afiançar que o Doutor Mara é o meu único amigo, fora aqueles mais chegados e um ou outro que ainda não conhece, e que nutro por si uma grande admiração e respeito. Por si não rebolaria com uma vara de porcos na lama de uma pocilga, mas interromperia imediatamente um almoço da “Confraria dos Excursionistas de 86” para o ajudar no que fosse preciso. Apesar de tudo, o ano que agora balança no fio da navalha leva consigo algumas tensões que de certo modo deterioraram a nossa relação. Quero portanto aqui deixar o desejo de que o ano de 2018 nos traga um entendimento mais profícuo e o apetecido sucesso internacional das Conferências da Fajã. Para que isso aconteça, basta que o Doutor Mara acabe de vez com essa sua teimosia. 
Com espírito natalino e cristalício,

Janeiro Alves

Três Poemas de Judite Canha Fernandes

lista de coisas que se podem obter sem dinheiro

imaginação
ar
sonhos
lixo
afecto
dignidade
e orgasmos

Síntese

fui à televisão ver
se o mundo tinha mudado.
assisti a vinte minutos de publicidade

Olhamos por si

as novas formas de deus 
incluem
a videovigilância

in "O mais difícil do capitalismo é encontrar sítios onde pôr bombas", Setembro, 2017.