quinta-feira, 11 de julho de 2013

Estivalística

Um milagre tecnológico está prestes a acontecer…conseguimos uma charla com o Doutor Mara via skype. Como é que tudo isto foi possível, perguntará alguém de direito, mas hoje de facto tudo se tornou possível com estas novas tecnologias ao dispor de um clique. Aconteceu quando um fotógrafo subaquático, em fase de mergulho com jamantas no atlântico, se deparou com o doutor Mara em cima de uma rocha com a sua Olivetti Linea 103 a bater texto como há muito não se via. Admirado com semelhante atitude radical, bastante fora do que é usual, diga-se de passagem, o fotógrafo decidiu oferecer a Doutor Mara a sua tablet da quarta geração e, como contrapartida, este somente teria de encetar connosco mais uma magnífica, para não dizer estonteante charla sobre a beleza da vida e do mundo e, muito naturalmente, sobre o verão, as praias, a melancia, a soberania de Eros e da sardinha no pão.   

DM: Doutor Mara é verdade que se encontrava em cima de uma rocha a bater texto com grande intensidade? E, já agora, podemos ficar a saber o que é que se encontrava a escrever?
Doutor Mara: Meus caros amigos, vocês sabem que as rochas podem ser sítios de evasão e de fuga e…para quem como eu que escreve muita coisa que pode ser má, as rochas podem ser um excelente sítio para evacuar. E como passo o tempo a deitar tudo cá para fora, vou escrevendo cada vez mais, guardo muita coisa, é um facto, ao mesmo tempo que vou escrevendo mais e mais, volto a guardar, e escrevo mais e muitas mais vezes e não sei o que guardar. Sofro do drama da folha escrita que é o contrário da folha vazia. Recordo aqui, o meu amigo Pietro Tarantini, cozinheiro de sons, que, quando pensou que escrevia alguma coisa de jeito, enviou-me uma carta com o seguinte conteúdo:Sei que tudo o que escrevo é uma merda, mas continuo a escrever, porque se não escrever rebento e se rebentar é merda por todo o lado". Apesar de se encontrar em auspicioso exílio musical, P. Tarantini continua a escrever numa espreguiçadeira como um desalmado…há quem diga que adormece com a caneta na mão…já vi coisas bem piores.

DM: Como por exemplo?
Doutor Mara: Gente que escreve em cima de árvores, outros em cima de telhados, outros no quarto dos fundos e há quem sonha que escreve alguma coisa. No entanto, conheço um escritor que escreve de pé, entre a casa e o trabalho. O seu primeiro livro obteve o curioso título de “O Palmilhador”. Ele colocou inclusive a imagem dos seus sapatos na capa, com as palmilhas muito gastas, por sinal.

DM: Desconfiamos que deve ter sido um sucesso, não?
Doutor Mara: Por acaso não, saiu das montras das livrarias logo na primeira semana. A imagem da capa é usada muitas vezes pelas empresas de calçado junto dos funcionários como um mau exemplo do uso da palmilha.

DM: Doutor, temos uma pergunta engatilhada para si: o escritor-filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe afirmou um dia que “Só o verão vale a pena”. Acredita realmente nisso?
Doutor Mara: Sim, sobretudo quando os invernos são bastante compridos e o verão aparece como a estação redentora, para nos salvar muito bem não sei o quê. A luz que incide sobre os seres humanos ajuda a torná-los mais airosos, desenvoltos e virados uns para os outros. O verão devolve-nos a infância por instantes, os dias são maiores, as cidades ficam completamente vazias, as praias atulhadas de gente, um calor infernal nas terras do interior, os restaurantes sem mesas para sentar, crianças e adultos a fazer xixi no mar…há aqui algo de pueril, para não dizer de telúrico ou mesmo selvagem. Recentemente vi o filme “A Ultrapassagem”, do Dino Risi, e, aqueles minutos finais passados na praia são hilariantes. Cinquenta anos depois, aquela “praia” do sul da Europa não mudou absolutamente nada: barulho, confusão, gelados, bolas no ar, refrescos e uma latina propensão para improvisar a festa e a sempre bem característica ribaldaria colectiva.

DM: Doutor Mara, dizem más línguas (ou serão as boas???)  que está irreconhecível, que para além de um equilíbrio interior conseguiu neste verão aquilo que os gregos designavam por ataraxia…o equilíbrio entre o desejo e a realidade circundante. Por acaso, não está apaixonado?
Doutor Mara: Como diria o nosso poeta português contemporâneo Herberto Helder, autor do mais recente "Servidões": “A energia é a essência do mundo”. De facto, se o amor significar energia, mola, despertar, movimento, aí sim, estou verdadeiramente apaixonado. Nesta estação também sinto o desabrochar dos tecidos, o suor latente nos poros, uma tensão permanente com a nudez do sexo oposto, o destilar dos líquidos e a beleza das searas que clamam por mais seiva e fluidez nos encontros. Enfim…a soberania de Eros no verão é uma constante.Mas sim, sinto-me bastante sereno, tranquilo na alma e no espírito, sei mais do que nunca como enfrentar a dor e as adversidades, aceito as contradições existentes na realidade.

DM: O que tenciona fazer nesta estação de diferente?
Doutor Mara: Em primeiro lugar, comer muita melancia, a reposição dos líquidos é essencial nesta altura e secos já bastam os bolos a partir das cinco da tarde. E, se possível, voltar a comer sardinha no pão – depois dos santos populares, esta baixa naturalmente o seu preço! Tenho o desejo ainda de ver um ciclo de cinema italiano da reconstrução (começarei com “Francesca, Um Amor Impossível”, de Alberto Latuada). Por fim, caso for ainda possível, montarei a minha égua de seu nome Lisa.

DM: Sozinho?
Doutor Mara: Penso que já estão a querer saber demais. E...se me dão licença vou deixar esta maquineta à prova de água na poça desta rocha que está mesmo aqui à frente. Não levem a mal, mas julgo que o que é demais é exagero. Não me habituo a este mundo híper-tecnológico. Adeus.

DM: Muito obrigado, Doutor Mara, por mais uma inolvidável charla…pois, infelizmente, nunca saberemos quando será a próxima.


Ofício de Viver

Cesare Pavese (1908-1950)

“Gli uomini non si lagnano del soffrire ma dell´autoritá che li supera e tiene e fa soffrire”


“Os homens não se queixam de sofrer, mas da autoridade que os supera, domina e faz sofrer.”



Cesare Pavese, in Oficio de Viver, 14/3/1946