quarta-feira, 12 de junho de 2019

O Poema

O poema deve trepar a carne
         como uma sombra
ou talvez como um orquestro
que estremece em todo o corpo
        Trepar o silêncio
e as jarras onde germinam
       palavras intraduzíveis
Descer os jardins na fronteira
         entre a voz e a cidade
       Trepar as gargantas
onde o tempo germina
na confusão das folhas
ou as noites que se alongam
na neblina arrebatada dos ossos
Talvez uma árvore que trepe
todo o poema todos os degraus
todo o sangue toda a asma
As palavras em todos os átomos
todos os isótopos possíveis
Um abismo repleto de artérias
a lucidez e a loucura pressentidas
-a instintiva comorbidade da caneta
Um poema que trepe a maresia
                ou as algas
inventando a luz de um interlúdio
        contínuo no piano
Piano que se reencontra com a ilha
                    purificada
      com a madrugada pulmonar
                 das sílabas
                Um poema
     que trepe todas as torres
       que contornam a culpa
       e a inocência de deus
         Que trepe o vento
batendo nas searas onde nasce
o terno rosto da imortal mãe
                  Um poema
que trepe as ervas brotadas
que crescem em sua demência
ao redor da candura
onde se duvida de um resto de orvalho
               Um poema
                    isto é
uma casa triunfal que ascenda
um dardo de papel recortado de sentidos
em direcção aos astros
                   isto é
à destruição de toda a memória
e de todo o esquecimento.

Leonardo in "Há-de Flutuar uma Cidade no Crepúsculo da Vida", Letras Lavadas