segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A Alegria de Quem se Deixa

    Não sejas pantomineiro, não pretendas o palco só para ti, escorregou-te a língua para proferires aquela verdade que experimentavas naquele momento num tempo que te parecia suspenso e indefinido. Adivinhaste assim o teu ponto fraco, previste o âmago de algo surpreendente do que se viria a desenrolar a seguir. Sentado numa esplanada da rua da Palha foi como se o teatro tivesse ficado vazio, sem espectadores, sem gente para assistir, dar conta de tamanho abandono a encetar. Naquela manhã quase desvendaste que dali a pouco seria tempo de partir novamente. Era uma dor devida e nunca merecida. A dor maculada da partida. E no entanto havia a aventura do recomeço que se afigurava na linha do horizonte. Nada na vida é seguro, exclamaste. Naquele momento vias nascer um segredo e era como se o sol depositasse na sua incandescência uma eloquência hábil e farta. O anúncio de saída estava por uma questão de dias, horas, ao virar da esquina. A bondosa nova entraria assim por dentro do visor do telemóvel, mexendo e remexendo na vida daquele inesperado actor que, dentro de instantes, ficaria mais uma vez sem palco, sem guião, sem ponto por onde se orientar. De nada adiantaria o lamento tão pouco a convulsão sentida após aquela mensagem directa e fugaz. A mudança a germinar no fundo do poço com um redemoinho das águas. Ou pomba morta após delicado voo, como se a tua língua e o mundo em volta deixasse de existir, de significar o que quer que fosse. Instalava-se assim a frieza como um requinte inventado e esquecida pela voluntária incerteza criada. Petrificado. Quase em pranto, olhaste em volta. Nada te faria levantar com as pernas coladas à cadeira nem mesmo a tradução de um manifesto desenhado ao longo do ano em que ali viveste. Num desespero súbito satisfizeste a curiosidade e confiaste que aquele fresco destino te seria favorável. Havia, no entanto, a pequena chama acesa dessa recente geografia a apelar e a relembrar visitas oferecidas no passado em geometrias variáveis, pueris e confusas. Acreditaste, por instantes, que à tua volta já pouco ou nada fazia sentido e talvez viajando investigarias as possibilidades que coubessem num bolso das calças bem como o resto da esperança da difícil apreensão do mundo ou ainda a desconfiança completa e a infelicidade gerada pela desilusão dos gestos em redor. A dor batia à porta. Outra e outra vez. Regressarias à provisória casa sem riso, sem as prováveis palmas, tão pouco os esgares espantados de uma plateia que te acompanhou durante dilatado período de tempo. Tudo se desmoronou em segundos: o espelho dos outros que não foram dignos desse olhar, o escangalhado quotidiano, a vetusta alegria na derrapante vida com a visão do mar ao fundo, o quente sabor e cativante proveniente daquela chávena quotidiana de café que ainda te segurava. O espectáculo, esse, seguiria dentro de momentos, não importava onde. Olhaste de soslaio para aquela rua da Miragaia e constataste que não mais usarias o motor do vento para a subir, não mais escalarias a calçada com o intuito de aqueceres o corpo ou secares a roupa com tantos e tantos pingos de chuva de um inverno infindável que se prolongará até ao início do verão. Enfim, de uma coisa tinhas a convicta certeza, é  de que em todas as ruas em que viveste não olhaste poderes de vezes para os pormenores nem detiveste o teu pensamento em disparates das singularidades de um lugar. Por isso, muitas vezes espreitaste para dentro da casa dos teus vizinhos e pensaste na forma como se entretinham ou resolviam os seus problemas, estudaste e quiseste saber quem teria ali vivido: as suas reclamações, as suas pequenas dores, os seus eternos vícios e as suas privadas virtudes. Houve mesmo um fim-de-semana em que quiseste perceber como é que a música podia influenciar a vida dos teus contemporâneos, percebendo aí a semelhança entre os músicos que habitavam nos subúrbios de cidades do norte da europa e aqueles que agora ocupam as moradias das ruas de ilhas de antigos impérios. Puseste-te a pensar nessa criação desmesurada que pode ocorrer no interior das casas e dos quartos enquanto a água vai caindo no exterior, marcada pela intensidade e o ritmo das estações, nesses lugares onde os mais novos já não têm paciência para ouvir a mesma música duas vezes.Sonhaste.
     Por fim, alçaste o corpo e, momentaneamente, quiseste esquecer o pensamento de todos os idealistas desde Péricles e o que ainda resta das quimeras da social-democracia de Olof Palme, as dunas e gaivotas das praias o´neillicas e as preces e cânticos religiosos dos marujos açorianos. Abandonaste assim o lado esquerdo da vida e, errantemente, seguiste em frente sem olhar para trás, pensando que nenhuma estrada ou recompensa é mais forte do que a alegria de quem se deixa.

Trinta anos depois...

        Há trinta anos foi publicado o livro “Arquitectura nos Açores: subsídios para o seu estudo” do investigador e coleccionador  terceirense  Francisco Ernesto de Oliveira Martins. Muita coisa mudou em três décadas...este inventário ajuda-nos muito a perceber o que está à nossa volta.