Não
sejas pantomineiro, não pretendas o palco só para ti,
escorregou-te a língua para proferires aquela verdade que experimentavas
naquele momento num tempo que te parecia suspenso e indefinido. Adivinhaste assim
o teu ponto fraco, previste o âmago de algo surpreendente do que se viria a
desenrolar a seguir. Sentado numa esplanada da rua da Palha foi como se o
teatro tivesse ficado vazio, sem espectadores, sem gente para assistir, dar
conta de tamanho abandono a encetar. Naquela manhã quase desvendaste que dali a
pouco seria tempo de partir novamente. Era uma dor devida e nunca merecida. A
dor maculada da partida. E no entanto havia a aventura do recomeço que se
afigurava na linha do horizonte. Nada na
vida é seguro, exclamaste. Naquele momento vias nascer um segredo e era
como se o sol depositasse na sua incandescência uma eloquência hábil e farta.
O
anúncio de saída estava por uma questão de dias, horas, ao virar da esquina. A bondosa
nova entraria assim por dentro do visor do telemóvel, mexendo e remexendo na
vida daquele inesperado actor que, dentro de instantes, ficaria mais uma vez
sem palco, sem guião, sem ponto por onde se orientar. De nada adiantaria o
lamento tão pouco a convulsão sentida após aquela mensagem directa e fugaz. A
mudança a germinar no fundo do poço com um redemoinho das águas. Ou pomba morta
após delicado voo, como se a tua língua e o mundo em volta deixasse de existir,
de significar o que quer que fosse. Instalava-se assim a frieza como um
requinte inventado e esquecida pela voluntária incerteza criada. Petrificado.
Quase
em pranto, olhaste em volta. Nada te faria levantar com as pernas coladas à
cadeira nem mesmo a tradução de um manifesto desenhado ao longo do ano em que
ali viveste. Num desespero súbito satisfizeste a curiosidade e confiaste que aquele
fresco destino te seria favorável. Havia, no entanto, a pequena chama acesa
dessa recente geografia a apelar e a relembrar visitas oferecidas no passado em
geometrias variáveis, pueris e confusas. Acreditaste, por instantes, que à tua
volta já pouco ou nada fazia sentido e talvez viajando investigarias as
possibilidades que coubessem num bolso das calças bem como o resto da esperança
da difícil apreensão do mundo ou ainda a desconfiança completa e a infelicidade
gerada pela desilusão dos gestos em redor. A dor batia à porta. Outra e
outra vez. Regressarias à provisória casa sem riso, sem as prováveis palmas,
tão pouco os esgares espantados de uma plateia que te acompanhou durante
dilatado período de tempo. Tudo se desmoronou em segundos: o espelho dos outros
que não foram dignos desse olhar, o escangalhado quotidiano, a vetusta alegria
na derrapante vida com a visão do mar ao fundo, o quente sabor e cativante
proveniente daquela chávena quotidiana de café que ainda te segurava. O espectáculo, esse,
seguiria dentro de momentos, não importava onde. Olhaste de soslaio para aquela
rua da Miragaia e constataste que não mais usarias o motor do vento para a
subir, não mais escalarias a calçada com o intuito de aqueceres o corpo ou
secares a roupa com tantos e tantos pingos de chuva de um inverno infindável
que se prolongará até ao início do verão. Enfim, de uma coisa tinhas a
convicta certeza, é de que em todas as ruas em que viveste não olhaste poderes de vezes para os pormenores nem
detiveste o teu pensamento em disparates
das singularidades de um lugar. Por isso, muitas vezes espreitaste para dentro da
casa dos teus vizinhos e pensaste na forma como se entretinham ou resolviam os
seus problemas, estudaste e quiseste saber quem teria ali vivido: as suas
reclamações, as suas pequenas dores, os seus eternos vícios e as suas privadas virtudes. Houve mesmo um fim-de-semana
em que quiseste perceber como é que a música podia influenciar a vida dos teus
contemporâneos, percebendo aí a semelhança entre os músicos que habitavam nos
subúrbios de cidades do norte da europa e aqueles que agora ocupam as moradias das
ruas de ilhas de antigos impérios. Puseste-te a pensar nessa criação desmesurada que pode
ocorrer no interior das casas e dos quartos enquanto a água vai caindo no exterior,
marcada pela intensidade e o ritmo das estações, nesses lugares onde os mais novos já não têm
paciência para ouvir a mesma música duas vezes.Sonhaste.
Por fim, alçaste o corpo e,
momentaneamente, quiseste esquecer o pensamento de todos os idealistas desde Péricles e o que ainda resta das quimeras da
social-democracia de Olof Palme, as dunas e gaivotas das praias o´neillicas e as
preces e cânticos religiosos dos marujos açorianos. Abandonaste assim o lado
esquerdo da vida e, errantemente, seguiste em frente sem olhar para trás, pensando que nenhuma estrada ou
recompensa é mais forte do que a alegria de quem se deixa.