terça-feira, 23 de setembro de 2014

Os Garajaus vão para Acra

Os garajaus vão para Acra
alegam a consistência das nuvens
 reforçam o princípio imutável das estações
esperam reunir-se no calor dos veleiros
à nova rota investem brancura no voo
desaparecendo na claridade da canícula
confiscando ao desfolhado Outono
o seu fim, precocemente, anunciado.

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Construamos barcos para as madrugadas
insulares. Tábua a tábua, porões,
convés, mastreações, velames,
vento nas enxárcias...
Construamo-los nós mesmos: velas brancas,
lemes, mastros, cascos que se afundem
nos horizontes repetidos.
Vertiginosamente aquáticas estas mãos
que adormeceram tempo de mais
no emaranhado dos sargaços
saberão, certamente, como redimir-se.
Desçamos às profundidades oceânicas
galvanizados por essa voz extrema
que nos toca tão de perto
e sintamos em cada tábua que um carpinteiro
alcança a outro carpinteiro – antevisões
de serras, puas, prumos,
viagens puras – cartografia perfeita
inscrita no dorso azul e fusiforme
dos cardumes.
Inéditas seriam estas paisagens submersas
se o coração as não soubesse.
Construamos barcos, ilhas / barcos
derivando.

in "Arqueologia da Palavra", Heitor Aghá Silva, 1991.