Construamos barcos para as madrugadas
insulares. Tábua a tábua, porões,
convés,
mastreações, velames,
vento nas
enxárcias...
Construamo-los nós mesmos: velas brancas,
lemes,
mastros, cascos que se afundem
nos
horizontes repetidos.
Vertiginosamente aquáticas estas mãos
que
adormeceram tempo de mais
no
emaranhado dos sargaços
saberão,
certamente, como redimir-se.
Desçamos
às profundidades oceânicas
galvanizados por essa voz extrema
que nos
toca tão de perto
e
sintamos em cada tábua que um carpinteiro
alcança a
outro carpinteiro – antevisões
de
serras, puas, prumos,
viagens
puras – cartografia perfeita
inscrita
no dorso azul e fusiforme
dos cardumes.
Inéditas
seriam estas paisagens submersas
se o
coração as não soubesse.
Construamos barcos, ilhas / barcos
derivando.
in "Arqueologia da Palavra", Heitor Aghá Silva, 1991.