Caro Dr. Mara,
Espero
que esta carta de Fevereiro esteja à altura da sua magnífica intelectualidade e
superior interesse, para que não a leia na diagonal como é habitual, e não
deixe assim escapar os pequenos detalhes das entrelinhas, decisivos para que
perceba que nem tudo espelha o que à partida aparenta.
No
Vislumbre está o erro.
Imagino-o
bem, na sua vida pacata, entre a casa, a biblioteca, e o café. Em casa
descansa, na biblioteca trabalha e no café convive, embora também conviva em
casa, trabalhe no café e descanse na biblioteca. Poderá também trabalhar em
casa, conviver na biblioteca (baixinho) e descansar no café, desde que tenha
boas poltronas para se recostar. Este seu triângulo é já uma rotina, e quem
disser que não precisa de uma rotina fá-lo por inócua rebeldia, ou por
manifesta incompetência. É essa rotina que lhe permite por em prática o seu
método de trabalho, a sua nobre missão de compor palavras através de letras,
frases por junção de palavras, textos como compilação de frases, e ideias por
intermédio de textos. Expresso portanto um sentimento de ampla satisfação por
ver o Dr. Mara, na plenitude de todas as suas capacidades físicas e mentais, e
sempre com os olhos postos na construção do universo futurista, a produzir
matéria literária relevante para as gerações futuras. Agrada-me sobretudo ver
que abandonou, num definitivo provisório, os seus comportamentos pouco
ortodoxos que tão lamentavelmente abalaram os pilares da sua idoneidade social
e dignidade pessoal. O dia em que largou o degredo e a luxúria e decidiu
regressar à sua promissora carreira, deveria ser feriado nacional! Longe vai o
tempo dos clubes nocturnos e dos negócios obscuros. Faça-se luz nas suas
ideias
Mas
já chega de falar de si, Dr. Mara, pois daqui a pouco, de tão inchado rebenta.
E se rebentar pelos ares, milhões de palavras desordenadas se soltarão e serão
arrastadas pelo vento para parte incerta, como pequenos murmúrios eternos
espalhados pela cidade à procura de bocas.
Este
seu admirador por aqui vai andando e observando. Andando pelo jogo da cidade,
observando transeuntes a arrastarem-se por entre os destroços da sua própria
existência, chorando mil lágrimas vazias no culto permanente da sua impotência
de amar. Na avenida passam autocarros repletos de amargura disposta em filas de
rostos adormecidos de olhos abertos. As pessoas andam tão cabisbaixas que
parecem tentar encontrar a lente de contacto que perderam no chão, e por cima
das nossas cabeças cai uma chuva torrencial de depressão e angústia.
Estava
a brincar, Dr. Mara. Apenas senti que esta minha carta estava a necessitar de
um momento de tensão. A cidade está resplandecente, as pessoas caminham com um
sorriso aberto pelas ruas, e a vida por cá é um grande festim!
Aguardo
notícias suas em breve, se não for antes.
Com consideração
e auto-estima,
Janeiro Alves