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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Périplo Finda, Mas não Cessa o Movimento.

 I - Fuga, Passado e Estúrdia  
     
         De volta à Ponta Delgada de Quental, como de tantos outros que a souberam cantar, logo à chegada, a descrição do banco de Antero para explicar que nem sempre a vida é o que nos contam nas revistas cor de rosa. A história mil vezes repetida e como seria interessante reler agora os seus textos. Actualizar a sua verve, perceber as razões, as sombras e derivações do pensamento. A cidade está, no entanto,  cheia de gente nas ruas, as lojas do centro ganham colorido e a temperatura de verão aconselha cuidados e demais estações improváveis. A Louvre Michalense é visitada debaixo de chuva, pois o passado é agora motivo de curiosidade e delicados encantamentos. O período é, portanto, das companhias de baixo custo, as pensões, pousadas e hotéis repletos e sem lugar, as pessoas e os táxis incansáveis à chegada do aeroporto. Quase não há carros para alugar e o inglês é a língua que se impõe e agita a vontade de ganhar dinheiro rápido. Algumas horas depois o derramar dos líquidos sobre a semente da amizade, desses amigos conversados pelas esquinas, espalhadas palavras e gestos por esplanadas, até à inesperada dormida no Hotel do Colégio. Pequenos luxos, quando o meio termo se esgota.

II - Aventura, Descanso e Partilha

      O momento pede silêncio, aventura, descanso. E há autocarros que fazem o favor de nos transportar até às Furnas em viagem de pequenos e agitados momentos de sobe e desce. O centro da vila anuncia de imediato um lugar agregador do verde, de suculentas águas que escorrem até ao mar, desse permanente cheiro a enxofre oriundo das caldeiras. Eis-nos perante uma natureza luxuriante e exaltante. Tempo para ir a banhos quentes, relaxar os músculos, aproveitar os dias para caminhar pelo verde. No final do dia, há massarocas à espera bem como os dias da longínqua infância para recordar. Estar só, ouvir os próprios passos no asfalto, a música interior a povoar a mente e a paisagem. A noite para exteriorizar a beleza avistada, fazer deslizar o pensamento pelos papéis na mesa, enquanto se rabiscam palavras em papéis abandonados pelos bolsos, um miúdo loiro de olhos azuis, ciranda a mesa com curiosidade, clama a atenção. Refere a sua simpática progenitora que este também escreve, família de escritores e contadores de histórias do norte da Europa: a Noruega. A apresentação desloca-se para o cinema enquanto profissão, a escrita como representação, a valorização do simples acto de escrever. Revimos afinidades e marcamos encontro para o dia seguinte, o que se viria a concretizar. Reconhecemo-nos nessa partilha, trocámos palavras, gestos simples de culturas e modos diferentes de estar. Viajámos juntos.  


III - Nuvem, Navio e Moinho

       Nuvem, navio, moinho...como explicar o movimento sem ficar parado? Como compreender que nos movemos apenas para entender, saber um pouco mais sobre nós, sabendo que mesmo assim restarão dúvidas, memórias, silêncios, escombros por explicar. A dupla de músicos Medeiros e Lucas na Galeria Arco 8, a pontuar a ideia dos sábados felizes do nosso contentamento. Alegria, evasão, sonho e música transmitida e expressa por estes dois príncipes da Atlântida. desta feita acompanhados pelo Tó Trips. O que se pode pedir mais aos músicos e à música quando esta é vivida e sentida? Certo que pediremos sempre mais nessa barca que balança e se agita, que vai mar adentro à procura do mais fundo de nós, até não mais parar. E por fim, antes da partida, um encontro com gente dos países baixos, a planura holandesa com todas as bicicletas nas ruas, o rumo difuso e sedutor das palavras com acento áspero, os trabalhos diários da mente, a psicoterapia enquanto tema de conversa, a forma elegante e doce de nos movermos pelo final dos dias com todo o céu doirado. As perguntas certeiras e o calor dos corpos. Os gestos serenos de quem tem tempo, a energia suave de quem navega em rota segura sem percalços. O périplo finda, mas não cessa o movimento.

domingo, 12 de julho de 2015

O Estio para dizer adeus às minhas coisas

O verão, finalmente, regressou. A água salgada entretanto aqueceu e com as temperaturas mais quentes regressam também as águas vivas, esses seres indesejados que marcam de rubro a pele dos mais incautos. Há tanta humidade na época estival que repetimos os mesmos chavões sobre o ir a banhos, os requebros físicos e a necessidade de refrescar o corpo e a mente, o desligar do cérebro por momentos. Ler? Nem pensar ou então aqueles livros de capa grossa que sacodem bem a areia. Para lá de tudo isso, temos  refrões de canções menores na cabeça, aceitamos com bonomia a época da parvoeira (os britânicos apelidam de sily season), que de tão habituados que estamos evocamos por entre as conversas, o canto dos grilos e das cigarras, a melancia, os gelados,  os chinelos que calçamos. Atento entretanto na tez grande que a rapariga ostenta, em noite de festa da cidade e bailarico popular, exibe um vestido preto com flores garridas. Deve ser assim o estio no país dela: flores coloridas, música festiva e alegria à beira-mar. Esta é a estação das estações, como diria o alemão Goethe, por isso queremos sempre ficar.
Somos o país com mais emigrantes na União Europeia. Este país é uma lágrima permanente. Ouço de novo a rapariga estrangeira que fala um português escorreito e perceptível, há tão pouco tempo aqui connosco e eu só tenho vontade de dizer que este país é para chorar. E que gostamos mais dele quando estamos fora ou temos que partir para outro país para ganhar aí a vida.  Eu sei que não devia, mas estremeço de emoção de cada vez que tenho que apanhar um avião, sempre que deixo um lugar e vou em direcção de outro. Deixo o meu quarto, mais uma casa (em quantas casas já vivi???) a certeza de que que não serei o único a mudar. Digo, portanto, adeus às minhas coisas, aos lugares onde dormi e às pessoas que conheci. Interrompo entretanto as conversas com os amigos e as amigas com quem conversei, relembro os momentos partilhados e peço desculpa pelas ocasiões em que abusei da paciência deles sempre que quis exaltar o prazer no presente ou a existência de melhores dias no futuro. A rapariga vai, no entanto, dizendo-se encantada com este lugar de instabilidades meteorológicas e natureza deslumbrante. Guardarei por isso o seu sorriso, as gargalhadas, digo-lhe de que somos assim, nada a fazer, uma parte de nós não tem emenda. Somos pesados, somos tristes, inclusive, a escrever, tão culpados de tudo e de nada, tão sem jeito é esta videirunha à portuguesa, já dizia o Alexandre O´Neill com razão e sem ela, ele que se despediu da vida em Agosto. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O espanto é não querer avançar.

        O espanto é naturalmente zetético. E viver espantado pode não significar avançar. Adiantar um passo que seja é diligenciar reboliço, convidar à inquietação, ao seu próprio alvoroço, atrair o individual temor perante qualquer movimento em falso. O espanto é este tumulto imóvel, desejar somente contemplar, e assim não determinar a finalidade de um gesto repetido quotidianamente. Olhar e unicamente experienciar a vida pelo interior de nós a deslizar.
       Não querer avançar pode ser também um ato de erudição. Pura sapiência. Evocar os seletos sábios ou o que fomos lendo deles. Permanecer prostrado perante tão delicada planta no corredor da existência serôdia. E de tão alta, tão esguia, tão bela e discreta que o seu nome é só aquilo que a natureza guarda. De gáudio fascinante. Enquanto me curvo é-me concedido um sorriso, o avistar do semblante, o despertar daquela presença concreta e cheia de graça. E de forma vegetal flui a seiva no apelido, já o sabemos. Queremos, por instantes, admirá-la. Essa exibição fresca de movimentos, o fausto e prazenteiro deleite do perfil diariamente visível. E que secretamente escapa, foge, regressando por vagas. É a fina delicadeza em figura, quase sem expressão, como num sonho muito antigo, concedendo apenas aqui e ali um esgar, um minúsculo devaneio de luz e deslumbramento. E a frágil certeza de que o digno de espanto é não querer avançar.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Velejar num Solitário até aos Açores


Ilustração de Pedro Valim
Nils Andresen não era um marinheiro qualquer, já que passou uma parte da sua vida a velejar e a publicar livros sobre os sítios por onde passava. Velejar e escrever foram dois actos contínuos e persistentes ao longo da vida e que, decididamente, o tornaram célebre junto de uma pequena comunidade de leitores ligados ao mar. Carl sentado, ao fim da tarde, numa taberna do centro histórico de Angra do Heroísmo, pensava inúmeras vezes na figura esguia e doce do seu avó e nas ocasiões que este deve ter puxado do seu caderno de apontamentos para fixar os acontecimentos do dia. Ao mesmo tempo pensava na sua própria loucura e no dia em que decidiu fazer-se ao mar para cumprir uma missão familiar: devolver os manuscritos do avó à pessoa que lhe terá feito permanecer na ilha mais tempo do que seria expectável. Uma pergunta assombrava a sua presença naquele lugar a meio do atlântico: quem seria o afortunado ou a felizarda daquela dedicatória a que os manuscritos faziam referência? Ali absorto em pensamentos, julgava que só o facto de ter ali aportado já teria valido a pena. Ele próprio não conseguia racionalizar muito bem os motivos e as razões da sua ousadia e aventura. Foi, por isso, no dia em que deixou de ir até junto do mar que decidiu viajar em solitário até aos Açores. Há tanto tempo que ele não saía do mesmo lugar daí aquela mistura de sentimentos. O que terá acontecido para se sentir tão alegre e triste ao mesmo tempo, perguntou-se? Carl há muito tempo que não vivia junto de um lugar tão próximo da natureza extrema, fosse no Inverno ou Verão. E velejar fazia-o crer que já não tinha casa. Queria muito acreditar que talvez o mar fosse a sua única morada de felicidade. Recorda-se também que um dia foi deslocado para um sítio sem mar. Os primeiros meses chegou mesmo a ficar muito abatido, tão arriado, que a planície que avistava proferia ser o mar a correr dentro dele. E emocionava-se.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Gostaria de ler o teu livro na minha língua

              Avistava-se a cidade da Angra com o cair da noite do debutante estio. Depois de quarenta e dois dias a vacilar com o corpo e o balouço do barco no mar, branco de tanto vomitar num veleiro de onze metros, quase no último trecho da viagem marítima e pedindo socorro às veias que sossegassem, clamando pelo findar da turbulência e acicatar das ondas que o impediam de olhar o mar na horizontal, Carl Andresen conseguia, finalmente, respirar. O próprio veleiro dava sinais de cansaço, constando um pequeno mastro partido e todas as velas por amarrar. Ainda que encantado por pequenos laivos do azul ferrete açoriano avistados amiúde, este velejador dinamarquês só pensava em regressar a casa pelo ar e não mais por mar. Para ele, mal colocasse os pés em terra, daria por terminada a expedição iniciada nas Caraíbas. Há vinte anos que ninguém desatava o nó daquele barco. E, após seis meses que ali esteve, a desfrutar das delícias da marina de Anse Marcel, no norte de Saint Martin, das cubas livres e do gin, conseguiu finalmente reparar o veleiro e lançar-se ao mar. Entretanto, chovia muito, muito, ininterruptamente, quando Carl atracou o veleiro na marina de Angra, na Ilha Terceira, pousando os pés em terra e lançando-se ao caminho para o jantar. Entrementes, quando subiu a rua viu um pequeno casebre com muita gente alcandorada na porta, entrando sem hesitar. Era uma taberna repleta de gente parecida com ele, sem pátria aparente. Identificou-se imediatamente com os presentes pelo olhar gasto e cansado de alguns homens, alguns um pouco mais velhos  mas que, tal como ele, despediam-se de mais um dia.
O que trouxe Carl Andresen aos Açores? Há trinta anos o seu avó Nils Andersen andou neste mesmo veleiro pela aquela ilha do grupo central antes de regressar à Europa e o que seria uma estadia de três dias transformar-se-ia em três meses, daí que que se conte que este se tenha perdido de amores pela ilha, muito embora se desconfie que outras “razões superiores” possam ter estado no prolongamento da estadia. Apesar do enjoo e da dureza da travessia, Carl fez-se acompanhar durante toda a viagem ao arquipélago de um manuscrito escrito em português, fazendo agora questão de o transportar para todo o lado onde ia. Para tornar mais simples o seu transporte, colocou aquelas páginas no interior desse livro navegante escrito pelo avó. Era um livro já muito gasto, amarelecido, com as pontas das folhas dobradas e retorcidas do seu uso e abuso. Durante aquelas três semanas, Carl julga ter lido estas duzentas páginas diversas vezes, tomou apontamentos, coligiu notas e tentou por momentos descobrir o significado daquele título enigmático: “Velejar em Solitário até aos Açores”. Ao contrário do livro e, com o devido respeito, nunca quis saber o que seu avó terá escrito naquele manuscrito na presença da sua família. De qualquer modo, ao contrário do livro, as páginas guardadas no seu interior não estavam escritas na sua língua, continha vários desenhos e perfis femininos que se julgava serem todos da mesma pessoa. Carl soube que aquando do seu regresso a Norjedland, após essa viagem ao arquipélago açoriano, trazia um sorriso do outro mundo e que de imediato guardaria aquela alegria de forma intensa, refugiando-se de forma incompreensível. O neto soube que durante algum tempo o avó respigava o nome Açores em qualquer enciclopédia e logo se punha a traçar rotas, a inventar mapas e destinos a visitar para futuras viagens. “Gostaria de ler o teu livro na minha língua” era o título da primeira página dos manuscritos pousados agora sobre a mesa. Carl, após jantar naquela taberna, prometeu a si próprio deslindar aquele mistério. (continua)

sábado, 29 de março de 2014

Guia Açoriano (II)

Fotografia de Tiago Rodrigues
        Cheguei à Ilha Terceira ao tombar da tarde, tudo me parecia absolutamente fascinante. E à cidade de Angra somente uma hora depois. Chovia. Encontrei um centro da cidade carregada de história e de património e à qual tinham acrescentado o dado mundial e, que ainda assim, não era causador de atracção turística. As suas casas e ruas tem um mistério de séculos e foi nessa ânsia de busca de conhecimento e passado que mergulhei através do “taxista-poeta” nas histórias de uma cidade aberta à minha curiosidade. Descobri no caminho para a cidade de Angra que bem perto do centro há um cemitério hebreu. Tomei um banho no hotel, jantei um amanteigado prato de lapas no Aliança e telefonei novamente ao taxista que me tinha acompanhado. Solicitei que me acompanhasse ao “Campo da Igualdade”, ao mesmo tempo que interroguei sobre a possibilidade de vir comigo ao tão afamado cemitério hebreu questionei sobre se este sabia mais alguma coisa sobra a passagem dessa comunidade em Angra. Este disse-me que quando terminasse o serviço nocturno que me ligava. Entretanto, munido do prospecto turístico que me tinha sido oferecido no aeroporto, caminhei em direcção à elogiada baía de Angra, inscrita em todos os roteiros turísticos. Após uma centena e meia de escadas, deparei-me com o antigo Mercado Dona Maria Pia, actual Centro de Ciência, situado no antigo caminho dos Côrte-Reais e tinha sido inaugurado a 23 de Agosto de 1884, ainda que neste folheto não diga quem foi o desenhador ou arquitecto de tão particular edifício. Minutos depois, o taxista ligou e, após duas ou três histórias caricatas da sua profissão, referiu que estava a caminho. Cheguei ao cemitério de madrugada e com ele trazia um folheto encardido, muito antigo, sobre a presença hebraica na ilha, escrito por um tal de Pedro de Merelim, e que me cedeu para ler durante essa curta viagem. Descobri de imediato que um Fortunato Benjamim, às portas de deixar este mundo e sem vontade de se juntar às almas inglesas no cemitério protestante, comprou à câmara municipal um terreno por 300 mil réis em 1832 com o intento de juntar por ali as almas da sua comunidade. Quando ali aportamos, ainda tentei subir o muro mas assustei a minha companhia nocturna, refreando o ímpeto constatei que o melhor seria voltar quando este se encontrasse aberto ao público. De volta ao hotel, passei a noite em branco a ler aquele livro emprestado com a promessa que o devolveria em mão na manhã do dia seguinte.

domingo, 16 de março de 2014

O Guia Açoriano

       “Tu és a pessoa indicada para a realização de um guia à volta do arquipélago.”- declarou a chefe de redacção alagada de salamaleques identitários quando ouviu falar na diminuição de pessoal no jornal e uma adquirida reestruturação do quadro da redacção do diário. Eu pensei rapidamente que aquela era uma forma subtil de me dizer qual era o caminho mais fácil para a desocupação laboral. Num breve instante passaram-me pela cabeça todos os artigos e reportagens que tinha escrito para aquele diário em dez anos de jornalista com carteira profissional para além das noites que passei naquela minúscula sala a escrever como um vagabundo, sem rota nem destino, a acrescentar o álcool vertido e o odor do tabaco colado à roupa, andrajos que no regresso a casa iam directamente para a vetustíssima máquina de lavar. “Quanto tempo é que precisas para realizar tal tarefa?”- Repetiu de forma contundente a senhora redactora e de mim apenas saiu um esgar de cansaço e um sorriso furtivo e sem alma. Era garantido que uma visita ao arquipélago açoriano era, no imediato, o que se me afigurava no horizonte em perspectiva.

       
Fotografia de Tânia Santos
         A minha interrogação, no entanto, crescia a cada momento pois não parava de indagar sobre o que é que eu sabia sobre as nove ilhas açorianas deixadas a meio do oceano atlântico por um antigo império ultramarino? Outra questão era o que é que a senhora redactora terá visto em mim para me escolher como organizador de um guia turístico para sair em breve com o jornal, ao mesmo tempo que me retirava das funções de sempre, da rotina a que estava habituado há tanto, tanto tempo. Desliguei o computador, saí da redacção do jornal e indaguei qual seria a agência de viagens mais próxima, precisaria entretanto de saber o preço das viagens já que com a contenção tudo me seria pedido nos próximos dias. Numa primeira instância precisava digerir o anúncio do despedimento ou afastamento das minhas funções de jornalista durante algum tempo. Daí ter procurado o café mais próximo para ler o jornal concorrente e pensar no que me estava a acontecer. Não era grave. Pensava em todos os amigos que tinha tido das diferentes ilhas durante o período da Universidade e numa viagem em tempos longevos a quatro ilhas integrado numa comitiva de jovens estudantes de Biologia nos idos anos noventa.  

sábado, 1 de março de 2014

Março Adentro

Fotografia: Tiago Rodrigues
Entrar por Março e também pelo mar adentro. Permanecer por ali, a ondejar com o peito completamente gelado e a dominar a vaga e a esconder os pequenos dedos hirtos dos pés. Um corpo ocupa demasiado espaço na água límpida por romper. Descerrar as mãos pela água salgada, abri-las para acreditar que à superfície tudo é credível, por instantes saber que são profundas as águas em que cada um se move e enfiar a cabeça nesse abraço e em todo este azul em redor. Daquele lugar guardar-se-á quase todos os mergulhos que ficaram por dar neste inverno fugidio e com o monte defronte só dá para espreitar o fundo destas águas, que são límpidas, realmente cristalinas. E a espuma é como se fosse um sopro no interior dos pulmões, em silêncio, onde podemos viver e mergulhar durante mais algum tempo. Respiramos. O mês de Março pode começar.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Nuvem Nómada

         Por onde anda a nuvem nómada? Da janela é fácil avistar o halo da hélice em aflição e neste atlântico veio o espraiar da largueza deste olhar que consente a lonjura e a desmesura deste oceano. Este movente pássaro transporta um ser a levitar de uma ilha a outra e é como se remetesse um dolente fardo, um aéreo corpo em fuga, magoado, estendido, confinado à sua existência de assento e de passageiro em trânsito. Um cagarro apavorado e à deriva. Atento unicamente à luz e ao seu arco proveniente da janela onde o carregado da cor do mar e do celeste céu é suficiente para afinar as agulhas da melancolia encoberta. Sem horas de sono, a imaginação tende a derreter e a discorrer sobre os minutos, os segundos, o tempo veloz e o ar rarefeito, contraído, para daqui a pouco regressar ao horizontal leito em dormência acelerada. Desligar o lastro de fogo e lume dessa boémia estada, ainda que ilustrada, é agora caminho lento que se percorre até aos motivos de um promissor presente. No fim da viagem é na  curva descrição da asa, em plena queda, que se instala a ambicionada  fadiga e daqui de cima se abraça a aproximação à pista deslocando  por momentos o devaneio de um quarto ao fundo, um lugar interior para repousar a cabeça e poisar o ombro, enfim pernoitar. Beneficiar por instantes do ampliado desenho na aterragem é já um contentamento atmosférico. Já não adianta conjecturar ilusões sobre o fundo do mar ou fantasiar com os barcos a afastarem-se ao longe. De súbito, estrear no vidro o toque da nómada nuvem a conflituar com o vento na descida.  Medo. E já nem a advertência do sonho chega com a queda de água oriunda desse céu coberto de nuvens negras, por sinal sedentárias, que obrigam a acordar. A despedida da nuvem nómada.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Trazer o Exílio no Semblante

Ilustração de Pedro Valim
Não adianta debandar mas a verdade é que deixaram aquelas pessoas sós. Demasiado desamparadas. Remediar esse desapego dizendo que elas caminham sempre com as meias e os sapatos rotos. Que indigência ver aquela gente necessitada de alma por ali sem rumo nem vitória. A sua vida comporta químicos e líquidos e sobeja água incessante por todos os lados. E nas gavetas os passaportes ainda que só viajem pelas ruas do seu país sob protectorado. E vê-los ali, parados, sem tão pouco conseguir proferir os seus pensamentos em português piegas quase dói. Bem podiam começar logo pela manhã a escrever o seu primeiro poema com o título “Encharcados de Lágrimas” e propor às editoras ainda existentes que abrissem os seus pequenos livros de poemas com mais olhos do que barriga. Contos de barriga vazia. Sabe-se agora que escrevem melhor prosa do que poesia pois descrevem memórias de outras paragens de forma tão triste e pesarosa. Discorrem sobre partidas e amores quase todos eles desiludidos e evaporados tal como o álcool nocturno consumido em bares de cidades antigas, abandonadas. Sobreviveremos mesmo sem desejarmos, não tenhamos dúvidas. Ou talvez  estejamos já acostumados, anestesiados a essa certeza de nada nem ninguém já querer patavina nem ninguém por aqui. É certo: escaparemos deste lugar e exilar-nos-emos para lá do que está previsto. Confiaremos cegamente nas estatísticas e em tantas imagens que nos injectam e assaltam diariamente e, dia após dia, devagar, muito devagar, começarão todos a partir. E mesmo assim estas pobres pessoas ficarão sozinhas, cada vez mais isoladas, nesse país à beira-mar defenestrado. Por isso não devíamos ir embora nunca. Nem aceitar exílios prolongados que permitissem que qualquer pensamento de mudança se perdesse em calendas gregas, agora também irlandesas. Quanto ao mundo é normal que permaneça cedido a engravatados de tráficos e demais comércios e aos comentadores das vagas e da incerteza. Desterrados de qualquer fé ou convicção já não incomodaremos mais nada nem ninguém. Banidos das ruas e das praças é estimado que fiquemos quietos, letárgicos e desanimados. Deportados de sentido ou de qualquer esperança. Apartamos de qualquer força ou energia. Sucumbiremos a tanta vontade de nos movermos daqui para fora. Assumiremos que mais grave do que exilar-se é o exílio dentro de nós.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Um Homem Sonha Deitado Sobre Nuvens



Fotografia: Eduardo Brito
Um homem sonha deitado sobre nuvens. Quando um homem abre os olhos tem a cabeça pousada sobre as nuvens. As nuvens não precisam de almofadas. As nuvens por vezes escolhem a cor em que os homens se deitam sobre elas. O vento sabe escolher as circunstâncias que sopram sobre o homem que cresce a pensar as horas do dia em nuvens. Um homem que vive e sonha nas nuvens é um nefelibata. Um homem que está nas nuvens não é deste mundo. O homem que aprende a olhar as nuvens arrisca-se a cair. Um homem que gosta de nuvens há muito que escolheu viver acima das suas possibilidades. O homem que sabe distinguir as nuvens há muito que descobriu que o tempo não é bom conselheiro. Um homem que sonha com nuvens sabe que a qualquer momento pode chover. O que existe para lá das nuvens do homem que sonha? 

Um homem que sonha com nuvens só acredita num único gesto que lhe restituia a direcção desejada. Assim de uma única vez, num único trago, de uma assentada. Como se o mundo parasse para a ver passar. Ponto final, sem vírgula. Mudar de rumo, alterar a direcção, intuir o movimento, alcançar a velocidade desejada. Há momentos na vida de um homem que ele quer agarrar a nuvem e nem sempre consegue. Um homem deseja abraçar a nuvem e ela desfaz-se. Um homem tenta por todos os meios acomodar-se e a nuvem desliza, derrapa, escapa-se-lhe. Um gesto apenas e bastava. Largar tudo o que se tinha feito até então, largar como se fosse um barco no mar, abandonar as coisas desejadas apenas pela metade, pelos interstícios, pelo meio. Sem intervalos. O que se começou e se abandonou, assim sem mais. O que se começou e nunca se terminou. E assim se calaria no céu azul para sempre como a última nuvem. Em silêncio. Sem rumor, apenas. Nem mais um som a ecoar, uma frase à superfície. Nem mais uma metáfora para justificar o abandono das coisas pelo meio. Nunca mais o ensejo de deixar todas as coisas pela metade, pelo meio, sem nunca chegar ao final. Da cabeça aos pés, dos pés até à cabeça, do tronco até à folha, nem mais uma palavra caída no Outono da vida.

Assim o homem que sonha com nuvens fosse como uma seta que atravessasse e mudasse todo e qualquer rumo, alinhamento, direcção. E que o caminho pudesse agora ter um fim, até à morte, e que esse final apenas estivesse para lá da linha do horizonte. Até ao fim da estrada. Até ao fim da vida. Nenhuma coisa, nenhum olhar, nenhum gesto, nenhuma nuvem negra desse outro tempo pudesse ficar. Nada. Porque já nada interessa. Porque o homem que sonha com uma nuvem renasce nos braços de outra nuvem, num outro sítio, num outro lugar.      

domingo, 24 de novembro de 2013

Didi adora posar...


     Didi adora posar para o seu amigo fotógrafo e encher as páginas do seu “book” com fotografias arrojadas, de grande pendor sensual, a roçar o  erotismo. As fotografias trazem sempre o cabelo ondulado e doirado de Didi e uma parte dele estende-se sobre o seu corpo delgado e fino, pontuado de linhas e curvas bem esclarecidas, acentuando a sua pele bem tratada, ainda que alguma rugas faciais denunciem já a passagem de Didi dos trinta e muitos, obrigando-a assim a alguns constrangimentos alimentares e ao cuidado exagerado com as combinações das roupas e dos seus vestidos com o tom de pele, apostando na delicadeza e suavidade das cores do baton nos lábios e as tonalidades certas de pó de arroz sobre as maçãs do rosto esgalgadas. O propósito de Didi é muito simples e eficaz. Didi quer muito que todos reparem nela e que cada vez que passe pelos representantes do sexo masculino, estes se dêem conta do que ela traz vestido e que a mirem de alto a baixo, como se de uma princesa inacessível se expusesse ali perante os seus lânguidos e lascivos olhares. O cuidado de Didi quando posa é tal que ela respira fundo quando ouve o click do seu amigo fotógrafo, em parte porque gosta de dar sinal do dever cumprido. O amigo fotógrafo de Didi também não deixa que nada lhe escape e, se vê que Didi está fora do plano, trata imediatamente de a admoestar ou avisar. E quer sempre muito que tudo fique como deve ficar, isto é, como ela aspira, para mais tarde recordar. A desventura de Didi é não poder usar todos os dias os seus óculos Paco Rabane, pois preenchem-lhe a cara mais do que é costume. O sol do lugar onde vive não ajuda e a invernia prolonga-se quase até à chegada do verão. Numa das fotos sensuais e audaciosas de Didi, ela está deitada sobre a areia numa praia deserta, com o mar ao fundo completamente desnudada ao cair da tarde, com o sol e a luz a desaparecer, sempre com o seu sorriso cândido e escondido, não tirando nunca os seus colares de mini bolinhas doiradas que se prolongam pelas costas. É impossível não pensar que Didi queira muito ser desejada pelo sexo oposto e que em parte o consegue dado que são muito poucos ou nenhuns que conseguem permanecer indiferentes à sensualidade do seu olhar doce e indolente. Falta saber se Didi quer ser amada pelos que vêem aquelas fotos no silêncio dos seus computadores, nos iphones da última geração, ou se ela gostaria que todas as noites alguém lhe narrasse estórias simples e verdadeiras, ou apenas alguém lhe desferisse o conto do bandido?  Nunca saberemos, Didi, certamente que não.  Por ora, é isso o que o olhar de Didi revela ainda que se apresente tão difuso, tão aéreo, porquanto tão sensual, não se sabendo ao certo se no momento da fotografia Didi está a olhar para o flash ou se para o público que passa naquele momento em que o seu amigo tira as fotografias. Didi sorri muito sem ser propriamente um sorriso inoportuno ou desproporcionado. Ela sabe que o resultado final nunca desilude, daí se expor tanto, chega  mesmo a mostrar-se de todas as formas e feitios, pois sabe que quanto mais pose tiver mais a sua imagem se alastra sobre todos os lugares onde ecoa o seu nome. Didi demonstra ser livre enquanto posa e essa liberdade ninguém a tira. Uma das fotos que  deu mais prazer a Didi e que ela narra a toda a gente ser a sua cara é aquela em que ela está em cima de um zebra completamente inclinada sobre o animal atenuando a leveza do seu peso sobre o seu dorso ao mesmo tempo que lhe afaga a crina. Didi, na verdade, adora posar ainda que todos saibamos que essa sua pose não tem fim, hora, dia, mês ou estação, pois alimenta-se de um oxigénio inesgotável. Didi tem consciência disso. Didi apenas desejaria posar. Cada vez mais.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Mar de Outono




      A miúda mergulhava sobre vagas e vagas alterosas, imitando com esfalfados gestos os golfinhos, permanentemente inquieta e a perguntar, a indagar insistentemente, a desejar saber mais e mais sobre a surpreendente ocupação laboral do mergulhador mais próximo em praia deserta naquele mar de Outono, a oriente de um arquipélago no meio do atlântico. Pergunta, miúda, pergunta, não deixes nunca de perguntar. Ela interroga, ela ambiciona saber e, provavelmente, ela quer entender aquele adulto mergulhador com trejeitos e tiques de adolescente que anda pela vida de um lado para o outro, ao sabor do vento e do mar, a caminhar entre Herodes e Pilatos, aguardando ansiosamente por ser atendido, à espera que alguém o considere em silêncio, que alguém o escute na sua demorada prece, na eterna expectativa que alguém solucione o seu problema. Não resolve, pois claro. Compreendes, miúda, não compreendes, pois não? Separam-vos três décadas num país à beira mar plantado e a ti hipotecaram futuro e o dele, é o que se sabe, mas não se deve nem pode infundir de amargura e pessimismo ao vosso presente. Nadaram ambos acima das vossas possibilidades, muita acima dessas vagas económicas que vos cobrem e vos atiram pela areia fora, num redemoinho que vos expele e expurga cada gotícula de esperança num mundo por vir, mas ainda há, malgrado, outras ondas ainda maiores como as da Nazaré que hão-de certamente resolver o vosso dilema do destino, algo que vos faça acreditar nos amanhãs que cantam para lá da dívida e dos cortes num país sob protectorado. Ficar ou partir? Não sabemos nunca. Ainda que se pressinta que com uma década de vida estás no caminho favorável, miúda, essa fina curiosidade que não se cansa de avançar e, que de tão permanente ajuda tanto a progredir noutros pontos do planeta e, quem sabe, com a ajuda dela, também tu, consigas um dia partir e atingir a tão almejada prosperidade e bem-estar afastada daqui. Correr mundo. Quanto ao mergulhador que, já tinha idade para ter juízo, retomará o seu pequeno gesto de responder ao absurdo quotidiano que lhe calhou viver ou simplesmente ao desejo de entrar…no mar de Outono.  


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Viver numa Ilha

Ilustração de Pedro Valim

       Encontrei Eunice ao cair do dia num fim de tarde de cansaço e de afazeres. Esta trazia no entanto os olhos muito brilhantes e o cabelo arrumado, tipo ondas, doirado como sempre. Não nos víamos há tamanho tempo daí a sua demonstração de surpresa quando me cumprimentou de forma coloquial com um sonoro e interrogativo:- Como anda o senhor que passa a vida a vida a fazer guias turísticos? Pediu-me desculpas por nunca mais ter dito nada desde que nos vimos da última vez, numa daquelas noites em que proferimos palavras de circunstância misturadas com outras meio estranhas e da ordem do mistério. Demonstrei-lhe sensatez e que nada daquilo tinha abalado a minha confiança e o meu interesse em conversar com ela. Eunice tinha saído da ilha durante algum tempo e por isso queria saber como é que eu aguentava viver neste isolamento sem asfixia ou limitações. “Nós sem querer acabamos por viver sempre numa ilha”, aludiu para atestar o meu grau de pureza insular. Falei-lhe do nosso programa pessoal de ir ao encontro de pessoas que se encontram na mesma situação e que somos muitas vezes nós que alimentamos e oxigenamos os nossos sentimentos com aqueles que se avizinham. Curioso, a Eunice, a mencionar a necessidade de passarmos um pano no passado, de não sermos absurdamente exigentes e de fazermos um esforço por ter um caderno de encargos compatível com quem nos rodeia, para além de não elevar o patamar de expectativas. Eunice deu-me a entender que eu talvez fosse uma pessoa muito diferente dela, demasiado ambicioso para os parâmetros dela e para as suas expectativas de mulher ainda jovem. Eu fiquei a pensar que muito embora ela fosse uns anos mais nova, dizia-me sempre coisas muita mais acertadas e muito mais interessantes do que alguém da mesma idade que eu. Eunice e eu sabíamos o que era estarmos enamorados por outras pessoas mas, porventura, muito mais do que paixão e amor nós precisaríamos mesmo é de ter coisas em comum com o parceiro ou parceira que arranjássemos. Eu sabia de antemão que, em primeiro lugar, não me coadunaria num ideal de parceiro para ela. Ela tinha uma teoria sobre quem escrevia e vendia os seus próprios textos. E por isso Eunice escrevia longos textos absorvendo com intensidade todos os pormenores e detalhes das histórias que eu lhe contava. Pela primeira vez, vi Eunice preocupada com o meu bem-estar, dizendo que eu não deveria fumar tanto nem ficar recluso tanto tempo em casa, que devia fazer as refeições a horas certas e que devia tentar dormir pelo menos oito horas por dia, no fundo, ter juízo. O que seria da vida sem literatura, redarguiu ao mesmo tempo que percebia o quanto ela necessitava de material, que era aquilo que eu me encontrava a fazer. Contou-me entrementes a relevância de viver uma história com alguém do que não viver absolutamente nada porque se evita ou se foge. Enunciei a Eunice que tinha vivido muito pouco histórias de amor, ainda que me encontrasse desgastado e sem energia e que já não sabia como libertar-me, nem como evadir-me do meu próprio programa em que me encontrava preso, por sinal, bem amarrado. Eunice transmitiu-me que ter uma relação com alguém tem que valer a pena. E que para merecer ou encontrar alguém tinha que ser uma pessoa que fizesse sobressair o melhor de cada um e que aceitasse o pior de nós.  Eunice demonstrava-se desiludida por ainda existir o mito dos príncipes encantados. E que para que isso acontecesse era necessário apagar o passado e estar predisposto e aberto a que novas coisas pudessem acontecer. Eunice elogiava-me a minha capacidade de ser livre pensador e a criatividade na execução de guias turísticos muito bem documentados. Mal ela sabia que eu admirava o que ela escrevia e o quanto o que ela escrevia era relevante para a minha existência. Chegou entretanto a melhor amiga de Eunice. Ela teve que se afastar e decidiu ir embora. Só me restou dizer que tinha gostado muito de estar com ela, que podíamos estar juntos mais vezes e que iria sair mais vezes ao fim da tarde para ver se o acaso nos punha em sintonia com o mundo. O guia estava quase pronto mas eu não sabia como terminá-lo. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Tempo

And it's Time Time Time
And it's Time Time Time
And it's Time Time Time
that you love
And it's Time Time Time


 Tom Waits

Ouvíamos o Time daquele músico americano da voz grossa. Em silêncio. A madrugada passou e nunca nada se aclarou. Tudo se inquietou em redor. Adormecemos. Envelhecemos mais um dia. Descubro-te algures a partilhar as letras e paisagens evocadas pelo músico.O turbilhão sensitivo expande-se agora pelas palavras adentro e já não sabemos da pregação aos peixes na aflição da dor e da ausência. É tempo de de cobrir o tempo de flores e de beijos. É tempo. 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Da onomástica guardarei o assombro do teu olhar...



           Há pessoas que escrevem coisas íntimas nas paredes de casas que julgam abandonadas. Há dias vi alguém que escreveu “Amo-te Filipa” na parede da casa onde durmo pelo menos oito horas por noite. Sempre que abro a porta de casa penso em todas as Filipas e na pessoa que terá escrito aquela frase. Será que se conhecem?
          Li, entretanto, que o nome Filipa significa o amor pelos cavalos. É um nome grego que os portugueses usam para dar às raparigas, por vezes  no masculino também nos rapazes, mas penso que não é por se assemelharem aos cavalos ou mesmo às éguas. É um nome que lembra a verdura e a fertilidade dos campos primaveris.
             Da janela de minha casa vê-se uma marina e é curioso que haja pessoas que, não sei se pais ou mães, apelidam as suas filhas com este nome que contém o atlântico e outros tantos barcos à vela dentro.
           Há barcos com nomes de pessoas com um olhar que não esqueço. Pessoas que fazem imaginar partidas, regressos, aventuras, viagens por mares agitados e turbulentos e entradas serenas em portos de abrigo. E enquanto desenho escrevo o nome delas tatuado no seu olhar carregado de sal e da cor do mar. 

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Ao Cair do Tarde Não Sei Bem…


Fotografia de Tiago Rodrigues


         Talvez fosse ao cair da tarde que te avistei, já não me lembro bem, sei que trazias um vestido azul-escuro no teu corpo quase adormecido. Quando surgiste diante de mim, pareciam ondas que entrevia e me faziam pensar em palavras e promessas antigas. Tantas palavras que falámos e discutimos sobre tantas coisas que eu não sei. Não sei porquê apenas me lembro de dizeres que gostavas do mar e das flores. Eu gostava disso. Gostava de gostar das coisas que nos parecem simples e verdadeiras. Mostrei-te músicas que trago neste peito de coração ao vento, ali junto da maresia com a luz dos candeeiros por acender, com a Primavera por chegar. Tu parecias também gostar, uma canção de cada vez e soletravas baixinho os nomes dos grupos, não te fosses enganar. O teu tom de voz flébil quase me fez dormir enquanto falavas. E choraste quando te falei dos males do mundo, da conspiração económica que aí vai, ainda do universo financeiro em colapso e dos malandros à escala mundial que nos governam e que fazem de nós marionetas. Do mal que nós julgamos ter triunfado. Da rotina de todos os dias, das canseiras de todas as horas, do desperdício de todos os minutos. Da falta de liberdade e do que seria a vida se todos fossemos livres e sensatos. De uma nova ordem mundial mais justa em que gostaríamos de viver. Choraste tanto que pediste para me calar. Disseste-me que tudo isto é mau de demais para acreditar e que nós acreditamos porque queremos acreditar. Acreditamos tanto que já não olhamos o que nos rodeia, já não somos capazes desse gesto simples de olhar o mundo à nossa volta, dessa pequena acção diária que é estarmos atentos e subirmos as escadas sem olhar para trás. Temos ambos vertigens. Sofremos os dois do medo antecipado, do medo cultivado, do medo por esventrar. Eu apertei-te a mão. Apertei-te com tanta força que tive medo de te magoar. Sorriste e partiste sem dizer quando nos voltaríamos a ver. Não sei se voltas. Não sei se um dia irás voltar. Não sei bem. Talvez isto tivesse acontecido ao cair da tarde. Não sei bem. Pois bem. Eu queria muito querer-te bem.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um estado de imperfeição



Na rugosa espiritualidade de Angra aberta. Não estava ninguém. Só solidão, silêncio e dragoeiros fechados. Voltaria amanhã se estes se cobrissem de brisa e de seiva. Quando se acerta em cheio no sulco da terra eis a devida recompensa. Presta-se ao sofrimento, dilui-se na bruma, nunca merecida. E no entanto o aconchego apresentava-se em linha, num tronco por rasgar, num carreiro indefinido. Nada é seguro. Tudo me faz querer voltar a cada momento a essa desenvoltura, como um segredo que nasce e o sol fosse breve e subtil na sua incandescência que se compõe de eloquência hábil e transbordante. Enganas-me sempre com a convulsão infinita pois espero que a mensagem seja fugaz e legível. É pomba morta e a língua deixasse de existir entre nós. Recomeçávamos sempre de um requinte inventado e sofrido pela involuntariedade sentida: o padecimento e a esperança. Queríamos acreditar. Nada me levanta as certezas a não ser agora a tradução de um manifesto vivido a correr. Aos prantos. Numa aflição súbita. Entretanto, satisfaço a curiosidade formigueira e aceito por agora a mágoa. Instinto ardente e aliciante sem que alguém traduza este eterno desencanto. A chama apagou-se e não me sinto capaz de me oferecer em geometrias variáveis e confusas aos novos caminhos do vento. Já nada faz sentido e viajo até investigar a possibilidade que cabe num pequeno bolso, o resto é difícil apreender do mundo, em desconfiança completa, a felicidade gerada a desilusão de haver esquecido o gesto em si. E assim a dor bate à porta. Outra vez. Vento despedaçante, água que cobre, neblina que cega. O mal já foi feito. E ainda há o vinho que é um amigo das noites sem nuvens, o encanto da cidade adormecida, ausente, despovoada. Nos membros espessos, extenuados, sinto já o peso da viagem que é um ensejo e é um templo de carência que pede há tanto tempo povoamento. Quanta beleza, quanta riqueza e pobreza conjugadas. Não sei porque me rio e deixo transparecer uma cândida nostalgia. Saudades de uma coisa que nunca vivi sem consequência do desespero habitado e secular. A pensão do desamor é já ali e a mente escorrega, desliza, e permite dizer que vão estar cá todas em plena comunhão da luz quando partir. Amanhã ainda é invernia e à noite iremos percorrê-la em farândola aventura. Basta. Estou cansado demais para que isto talvez possa ser uma forma simples de existência e ficam escolhas e letras numa madrugada de chuva que cai incessantemente. Esmoreço a pensar demais e a escrever tão pouco e raramente me adianta esperar nem desesperar ao revés de tudo aquilo que me foge como um pássaro e devagar acreditar. Como se lentamente viesse a morte numa suave contagem decrescente e assim aumentasse de feição o desespero de nada ter conseguido e continuar serenamente idêntico ao meu ponto de partida este estado de contínua imperfeição.

PS - Escrito a partir do mote dado por um aprendiz de arquitectura da Old School.