O escândalo
está prestes a acontecer, melhor, já aconteceu, dado que estamos aqui na
presença do nosso conhecido amigo Doutor Mara deitado na proa de um protótipo
da finlandesa Nautor`s Swan, um veleiro de 30 metros, portanto, com um preço
que deve andar na ordem da dezena de milhar de euros e que só na manutenção
custa um milhão de euros. É caso para dizer: " -Mas que desfaçatez, Doutor, como foi possível?”. Muito embora,
tivesse sido bastante trabalhoso chegar junto dele, pedimos autorização à Junta Internacional de Portos e Marinas,pois julgamos ser possível entamelar
algumas perguntas, muito mais que urgentes, necessárias.
Douta Melancolia-Doutor, doutor, como foi possível?
Doutor Mara-Como foi possível?
DM-Sim, doutor, alguém como o senhor neste aparato, opulência,
rendido a esta faustosidade existencial?
Doutor Mara-Pois é, meus amigos, creio que a beleza da existência e
da vida vem daí, isto é, dessa eventualidade de podermos variar, mudar. Essa contingência
de podermos escolher vários caminhos, diversas hipóteses, realizar o impossível. Cantar como o Brel em La Quête: “Rêver un
impossible rêve/Porter le chagrin des departs/Brûler d'une possible
fièvre/Partir où personne ne part/Aimer jusqu'à la déchirure/Aimer, même trop,
même mal,/Tenter, sans force et sans armure,/D'atteindre l'inaccessible étoile.”. Foi isso que eu decidi fazer...
DM: Terá sido por isso que Janeiro Alves decretou a sua ruína,
chegou mesmo a aventar a hipótese de falência da sua entidade física. O que tem
a dizer sobre isto e sobre Janeiro Alves?
Doutor Mara: Especula-se muito, demasiado até, sobretudo a minha
relação com Janeiro Alves. Devolvo-vos a pergunta, quem é Janeiro Alves para
dizer seja o que for? A última vez que soube dele ficou preso numa casa de
banho de um centro comercial. Fui eu que o salvei ao revelar-lhe técnicas muito
simples de abertura de maçanetas. Como posso dar crédito a um inveterado
columbófilo dos dias de hoje. Tenho uma profunda estima pelas sua formação e
ilustração mas desconfio sempre que o vejo a pregar cantilenas de amor ao
próximo. Um utópico, quero eu dizer. A minha crença no ser humano ficou muito abalada quando Janeiro Alves
decretou o fim do clã Manaia. A Miriam ainda esta madrugada se queixava disso.
DM- Mas, doutor, os ideiais colectivistas de juventude, as
manifestações em que participou a pedir uma maior justiça entre todos os seres
humanos, os abaixo-assinados ecologistas, as petições em prol de mais
democracia, a exaltação do internacionalismo, enfim, há todo um conjunto de
pessoas que deixarão de confiar em si depois disto. Nós próprios ainda não
conseguimos acreditar. Esta abundância, este exagero, foi alguma paixão, amor
ou inclinação mal resolvida?
Doutor Mara: Meus caros amigos, muito sinceramente, vejo que são
muito imaginativos. Não vejo qual é a gravidade da situação. Querem
explicar-me, verdadeiramente, o que é que se está a passar?
DM: Doutor, você está deitado num deck de um “Grand Soleil 54”. O
senhor Doutor sabe, por acaso, quanto é que custou este veleiro?
Doutor Mara: Vejo que só vos move o escândalo, a pândega
bisbilhoteira, o escarafunchar da vida alheia. Deixem-se de coscuvilhices, meus
caros amigos, é tempo de perscrutar o lado positivo do ser humano. Como vocês
sabem, vivi durante algum tempo dentro de uma cratera de um vulcão e, subitamente, quis ser
skipper de veleiros e iates de grande dimensão. Qual é o mal disso? Demorei um
ano a aprender as competências e os requisitos necessários. Demorei treze dias a atravessar o
atlântico neste veleiro, e isto porque quis conhecer de forma descontraída e
profunda a filha do capitão do barco, dado os espaços exíguos propícios à conversa e à
reflexão, senão tinham sido apenas dez dias de travessia. Por isso, deixem-me
em paz, se fazem favor.
DM: Skipper… doutor? Pensamos que o veleiro fosse seu, não é mesmo?
Mas skipper, doutor, para o havia de lhe dar?
Doutor Mara: A verdade é que já não consigo viver em terra.
DM: Muito obrigado, Doutor.
Doutor Mara: Não voltem nunca!
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