Houve um tempo que foi simples, demasiado
simples até, escrever ou editar um livro em Portugal. Trabalho árduo será
publicar um livro que contenha uma determinada identidade e que possua dentro de
si um sentido de comunidade e diversas e intrincadas conexões estéticas, isto
é, que goteje lastro e contamine tudo à sua volta num universo visível de
centelha para lá de abarcar dentro de si um combinado sensível de partilha e
inclusão. Impossível? Pode ser que não!
O
livro “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, do jovem micaelense,
Leonardo Sousa, é uma primeira obra que reúne dentro de si uma galáxia afectiva
de diferentes autores, sendo, sobretudo, um livro de um autor com força e
singularidade que editou o seu livro iniciático e que não é, certamente, mais
um a povoar as estantes das livrarias ou das bibliotecas. Escrever um livro é,
portanto, uma tarefa arriscada e, na maioria das vezes, um feito inglório,
ainda que nos convençam do contrário. O autor que tem uma aguda consciência do
exercício da escrita e da transpiração que esta requer, escreve na página 41
deste livro em forma de aviso: “fazer um
verso é entregar a alma e mutilá-la muitas vezes”. Alma mutilada, portanto.
Daí que este livro com o curioso título “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo
da vida”, para além de ser a primeira súmula de versos e contos do autor, é
também o anúncio da sua afirmação enquanto escritor e literato, a sua assunção
de vida literária e sinónimo de revelação e ousadia lírica como podemos ler em
“Nota Informativa I”: “não há utilidade
em conhecer palavras / tua boca move-se com a lentidão das portas à noite /ou com
a monotonia do lume que te passeia nos olhos/ continuas a procurar/ as sílabas
que te levem ao derreter dos versos/ ou ao presságio da saliva dos espelhos”.
Escrever ou procurar as sílabas que te
levem ao derreter dos versos passou, portanto, a fazer parte da sua vida e
este enfrentamento é digno de estima, elogio e admiração. Seria, no entanto,
bom esclarecer que muito embora os encómios naturais a que esta primeira obra possa
estar sujeita convém não embandeirar em arco ou desperdiçar loas de forma fácil
e corriqueira pois acreditamos que ainda há muito caminho por fazer e desbravar.
O livro convoca a poesia, a prosa e o conto sendo neste último registo que o
autor arrisca abrir o jogo do que está para vir: “- rasurem a minha vida, quero
escrever outra e medito, eis as minhas pernas um tanque e cicatrizes (…)”. O
escritor está consciente que este é um livro de homenagem aos seus autores
dilectos e que por ali ecoam vozes de leituras, lampejos e demais amores-perfeitos.
Ele começa desta forma um diálogo de gigantes e comprova a presença dos autores
eleitos em muitas das páginas do seu livro, o que convenhamos não há mal nenhum
nisso e é até sinónimo de leitura e gratidão perante a obra de outros. Não será
muito difícil encontrar aqui e ali ecos e ressonâncias de Paula Sousa Lima, Al
Berto e o seu “Horto de Incêndio”, ou ainda marcas de intertextualidade de
leituras mais recentes dos romances e crónicas de António Lobo Antunes, para
além de toda a obra do seu poeta de eleição: Herberto Helder.
A
fasquia que Leonardo Sousa colocou perante si está, portanto, muito elevada e,
só por isso, devíamos neste momento elogiar a sua ousadia e coragem lírica.
domingo, 6 de abril de 2014
Revelação e Ousadia Lírica
(A propósito de “há-de flutuar uma
cidade no crepúsculo da vida” – de Leonardo
Sousa, Letras
Lavadas edições, 2013)
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