Magnífico Doutor,
A presente carta reveste-se de um carácter extraordinário e premente, e resulta da minha indisfarçável preocupação com o modelo adoptado para as Conferências da Fajã deste ano. Por este andar, qualquer dia seremos uma espécie de web summit regional, um folclore mediatizado de pseudo-hypster-trendy-dandys engalanados, preocupados com os seus egos, e pouco interessados no pensamento de vanguarda e no bem comum. Qualquer dia, as Conferências da Fajã são patrocinadas pela vodafone ou pela margarina vaqueiro! Como pudemos aqui chegar, Doutor Mara?! Como podemos deitar por terra todo o manancial de reflexão crítica e construtiva para a construção do Séc. XXII futurista e expressionista?! Para que tenha noção do meu estado, tenho o sobrolho a palpitar, de nervoso. Há pouco, tomei um calmante e um copo de Macieira, para ver se não descambo. Perante isto, temos de tomar uma atitude, Doutor Mara! Eis portanto a razão desta carta.
Em primeiro lugar, e porque nem tudo é
mau, queria dar-lhe (pessoalmente) os parabéns pela escolha do Champagne. É
realmente uma selecção cuja dignidade e sofisticação se coaduna com a elevação
do evento. Eu juntaria apenas o famoso Boerl & Kroff Brut, bastante
apreciado quando bebido em cenário natural ou florestal, combinado com leves
odores a maresia. Infelizmente, não posso dar-lhe os parabéns pessoalmente como
desejaria, dada a impossibilidade física e psicológica de me deslocar, pelo que
deixo aqui os meus parabéns por escrito. Apesar de não ser um acto tão efusivo
como seria pessoalmente, onde seria selado com um aperto de bacalhau e algumas
palmadas nas costas, tem a vantagem de ficar registado para a posteridade ou
pelo menos até que estas folhas voem dos seus bolsos para a beleza do
desconhecido.
Sem causar prejuízo na congratulação
antecedente, avanço com a minha severa crítica à escolha dos chefes Gomes de Sá
e Bulhão Pato para conferencistas, pois como é do conhecimento geral, estão presos
ao passado, são conservadores, botas-de-elástico, e contribuem sempre com a
mesma receita para pensar o país, aquela que já apresentaram no passado, e que já
enjoa de tanto enjoar. Relativamente aos restantes conferencistas, por muita
categoria que tenham, vejo muita gente ligada à temática do turismo. E a
consciência Futurista, Doutor Mara? O turismo é apenas um fenómeno passageiro
do nosso tempo. É preciso ver mais além! É preciso gente das ciências ocultas,
da sociologia, da meteorologia, das artes e letras, da indústria têxtil!
Por outro lado, reconheço no Doutor Mara
qualidades para a organização de um evento deste gabarito, mas não vislumbro em
si dotes de “curassário”, esse vocábulo espalhafatoso e sobredimensionado.
Julgo que a Comissão Geral se precipitou ao depositar em si toda esta
responsabilidade. O Doutor Mara precisa de ser assessorado por quem saiba da
matéria. Infelizmente não vou poder ajudá-lo nesta fase, pois estou a tratar da
minha dentição de forma a vir a revelar um sorriso irrepreensível nas sessões
fotográficas das Conferências. Ainda assim, é meu dever dar uma mão a um amigo
de longa data, sobretudo quando mais precisa. É por isso que a seu tempo
enviarei algumas sugestões ao Dr. Costa Martins, da comissão organizadora.
Quero no entanto, e previamente, recolher a sua opinião sobre a ideia que tive
esta manhã, a aplicar já na próxima edição: Proponho que os conferencistas vistam
roupas tradicionais dos seus países, para que os restantes colegas possam fazer
um reconhecimento imediato da sua proveniência, podendo assim preparar
antecipadamente uma abordagem para conversa casual nos coffee breaks, evitando-se desta formas constrangimentos
linguísticos desnecessários. Estou certo que também considerará esta ideia
genial. Fazemos o que podemos, com altruísmo, e por amor à causa.
Por fim, despeço-me do meu caro amigo
com uma triste notícia. Por imposição das elevadíssimas e doutas autoridades
sanitárias desta cidade, deu-se ordem para a extinção imediata do fabrico de
filetes de peixe, com ou sem espinhas, pelo facto de este produto gastronómico
não obedecer à normativa nº 121 do código de qualidade e segurança 3001 da
União Europeia, com efeitos retroactivos e devolução imediata dos produtos
adquiridos nas últimas 3 semanas. Assim, e por ordem daquela autoridade,
solicito-lhe que me devolva os filetes de peixe da última remessa.
Com apreço e consideração
Janeiro Alves
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