Doutor Mara,
Estou estupefacto, que é como quem diz,
estou estúpido de facto. Atenção, não confundir com estúpido de fato, expressão
reservada aos que empobreceram a língua de Camões. Estou de facto estupefacto porque
me chegaram aos ouvidos informações pouco abonatórias a seu respeito. Tão pouco
abonatórias que eu diria até desabonatórias.
Sussurram-se pelas ruas de Lisboa as mais
acutilantes farpas a seu respeito, deveras comprometedoras aliás. Diz-se que
anda a viver acima das suas possibilidades, à grande e à francesa. Que trocou os filetes de peixe por luxuosas
iguarias que incluem santola ao pequeno-almoço e vieiras ao jantar. Que foi
visto a beber champagne do bom e do melhor na Sociedade Eusébio Deus da Pátria,
tendo sido apanhado numa conversa sobre malas da Louis Vuitton com burgueses
engravatados. Que mandou vir de Itália uns sapatos de pele de crocodilo que usa
para grandes jantaradas e para passear no canal sentado no lounge de um Iate Ferreti,
degustando Mon Cherrys feitos com
fruta da época, e servidos em bandeja de prata por empregados do Bangladesh.
Também me foi dito que ultimamente se pavoneia na avenida de fato branco e
óculos 3D, acompanhado de algumas divas internacionais do espectáculo e das
variedades, cumprimentando toda a gente com um aceno de mão, mesmo aqueles que
não conhece. Enfim, que está transformado num grande burguês.
Confesso-lhe, Dr. Mara, que necessitei de
alguns dias para reflectir sobre o assunto, intercalando com outras reflexões
de índole mais científica, como por exemplo a problemática da actual falta de
meios e de conhecimentos para uma observação eficaz das naturezas mortas.
Tenho-o como um homem de bem, apesar da
forma errática como tem conduzido a sua vida, e apesar de todos os escândalos
em que se envolveu por intermédio da sua promíscua relação com a família
Manaia. Tenho-o também como um homem culto, das filosofias e das humanidades,
apesar de saber que não perde os programas do Goucha, também conhecido como o
Pomba Branca. Enfim, vejo-me incapacitado de o relacionar a tal descalabro, e
portanto presumo que esteja a ser alvo de uma cabala, uma verdadeira maquinação
de malvados ou maganos, com o intuito de denegrir a sua imagem e
consequentemente desmantelar o seu edificado intelectual. Depois de todos os
retrocessos que tem vindo a fazer após o seu pico de popularidade, imagino que
estes rumores sejam para si verdadeiras chibatadas nas costas, e lhe causem um
sério transtorno.
Dito isto, deixo aqui registado, assinado
e subscrito, que estou solidário com a sua ilustre persona. Não o posso ajudar, pois como o Dr. Mara sabe, a
observação e registo de fenómenos para normais ocupa todo o meu tempo. Mas
posso aconselhar-lhe alguns capangas para o proteger no caso de ter de avançar
para o exílio. Aconselho-lhe Bordéus, onde encontrará bons vinhos e óptimos
filetes de peixe.
Junto a esta carta, seguem algumas
conservas Bom Petisco e uma garrafa de Macieira, que lhe pouparão pelo menos
uma ida ao supermercado, evitando que se confronte com a ira popular dos seus
admiradores. Aguardo notícia de como pensa sair de toda esta situação
constrangedora.
Com reforçada consideração,
Janeiro Alves
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