Caro Doutor Mara,
Tenho estado
envolvido nos meus estudos psico-sociais numa floresta tropical tasmânica que
plantei meticulosamente no jardim da minha vivenda. Se excluirmos os dias de
puro ócio com festas de Black Captain Morgan e mulatas ao som de Trio
Matamoros, têm sido dias árduos de trabalho e isolamento, sangue suor e
lágrimas imprimidas pela sede do conhecimento humano e da descoberta científica
ao serviço da humanidade.
Tudo estava bem, até que num dia
comum, longe das luzes dos holofotes mediáticos da sociedade de consumo, recebi
uma carta oficial registada e com aviso de recepção, para me apresentar para
interrogatório num palácio governamental em Lisboa. Lá, perante três vultos
medalhados, tive de responder a algumas perguntas de índole pessoal.
Perguntaram-me porque não tinha facebook,
porque é que não via televisão, se sabia dos atentados, e se sabia que Portugal
tinha sido campeão da europa. Afirmei que estava ocupado com outras coisas, o
que provocou a ira dos presentes. Disseram-me que fazia parte dos deveres do
cidadão estar atento, participar em comentários online, ver telejornais para ter opinião formada, e participar em
redes sociais, pois caso contrário a minha pessoa poderia estar em perigo e
constituir perigo para os outros por desconhecer procedimentos de segurança por
parte das autoridades, caso eles venham a ser implementados em estado de
emergência. Entregaram-me um papel carimbado e assinado pelo estado-maior e fui
de imediato escoltado por outros dois vultos até ao portão.
A carta
catalogava-me como “Excluído”, referindo que constituía uma ameaça ao interesse
nacional pelo alheamento voluntário dos cenários de terror e flagelo na europa,
e sobretudo, “pela ausência de medo”! Mas a carta não se ficava por aqui.
Referia também a obrigação de frequentar aulas de formação em determinados dias
da semana, em determinado edifício da cidade, a uma determinada hora. Apesar da
obrigação, fui de livre vontade, pois achei que desta forma contrariava o
carácter obrigatório da convocatória.
Numa sala
impessoal e desprovida de cor, num sétimo andar de um edifício cinza uniforme
espelhado num dos lados e dotado de câmaras de vigilância da marca “sorria”, lá
me sentei numa cadeira azul, cor de lápis. Depois de uma breve apresentação por
parte do formador, que trouxe uma folha já escrita e até leu o seu próprio
nome, a luz baixou e o projector ligou-se. O que se passou a seguir, Dr. Mara,
foi um espectáculo de manipulação, com imagens de noticiários do correio da
manhã sobre os atentados, a exaltação orgulho nacional no campeonato europeu,
as sanções da união europeia, e até, imagine-se, uma reportagem da gnr sobre os
perigos de caçar pokemones na via pública. No final tive de preencher um
formulário - Filiação Partidária: sou
de um partido estrangeiro que não há cá; Orientação
Sexual: ultimamente não me tenho orientado muito, ando ocupado com outras
coisas; Conta de Facebook: não tenho
mas mantenho os álbuns de fotografias de família; Remuneração Mensal: não aplicável. Recebo à semana; Tem filhos? devo ter alguns, espalhados
por África; Situação Militar: acho
que está cada vez pior…
Bom, neste
momento tenho a casa escoltada pela polícia, e apareceram-me dívidas
imaginárias nas finanças e na segurança social. Caso o Dr. Mara ainda não tenha
percebido, estão-me a querer fazer a folha, meu caro. Estas cartas ainda
escapam ao controle porque são levadas ao correio pela minha governanta, mas
receio que mais cedo ou mais tarde sejam interceptadas.
Preciso da sua
douta opinião em relação a este assunto, pois ecoa por parte dos alinhados que
poderei estar em maus lençóis. Já pensei em pedir asilo político, mas ainda
estou a escolher um país que melhor se adapte ao carácter exótico da minha
personalidade.
Aguardo assim
que me garanta que desse lado do oceano as águas estão mais brandas, condição
necessária para despoletar na sua consciência a voluntariosa necessidade de dar
uma mão a este velho amigo que lhe envia sinceros cumprimentos.
Janeiro Alves
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