Alpes, 4 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
Ultrapassados os incidentes descritos na carta
antecedente, encontro-me agora em convalescença num casebre isolado nas
montanhas, que julgo não ser tão tenebroso como o imagino. E porque quando
estamos descontentes com o mundo, estamo-lo sobretudo com nós próprios, forcei-me
a um miserável isolamento para reflectir sobre acontecimentos. Encontrei porém
nos últimos tempos uma escapatória através dos filmes. O cinema é um terraço com
vista para o mundo, dá-nos instrumentos para manusearmos o lado fantasioso que
nos habita, adormecido pelos atropelos da vida real. O problema é quando o
cinema é real, como perceberá mais à frente.
O dia ontem foi de tempestade com neve, frio,
relâmpagos, trovões e o mundo a desabar à minha volta. Perante esta espécie de
holocausto, acendi a lareira, meti a tocar um disco de Vítor Espadinha,
servi-me de Macieira, e pus-me a ver material de família. Comecei por um
conjunto de fotografias antigas. Raramente as vejo e mostrá-las nem pensar,
pois como sabe tenho uma família de trogloditas, todos eles com caras
assustadoras. As minhas irmãs são horrendas e cadavéricas, por isso nunca
casaram, e já nem recebem visitas em casa. Quando eu era pequeno, no quarto dos
meus pais ouviam-se sempre gritos de manhã, quando acordavam e olhavam um para
o outro, e eu quando nasci e olhei para eles, chorei durante um mês sem parar.
Os meus tios eram todos iguais ao corcunda de Notre-Dame depois de um banho em
ácido sulfúrico. Os meus primos são uma abstracção da natureza. Têm a cara
cheia de borbulhas, os dentes encavalitados e saídos ao nível do nariz, reles
bigodes de meios pelos, caras ovais e disformes pelas quais escorrem fios de
azeite virgem, e os que ainda têm cabelo apresentam um tufo de pelos ríspido
como um esfregão de palha de aço em forma de ninho. São assim os meus primos.
As minhas primas são iguais, mas com patilhas, e uma delas tem mamas. Enfim meu
caro Mara, não me querendo estender, um autêntico freak show. Felizmente eu sou
o desvio à norma.
Mas voltando ao dia de ontem e a minha alusão
inicial ao cinema: A minha família, como sabe, sempre teve dificuldades em se
relacionar socialmente com outras famílias, pelo sentimento de repulsa que
causavam. Por esta razão sempre se dedicaram a actividades caseiras, em clã.
Era uma família unida pela feiura. Na década de 60, uma das actividades do meu
pai e dos seus irmãos, então conhecidos como os “Irmãos Lumiar”, era o cinema.
Filmavam e construíam enredos à volta de coisas simples e quotidianas, pois não
se podiam afastar muito de casa. Descobri algumas dessas fitas, e trouxe-as
comigo desde Vale Escabroso, a terra da minha família, para as visualizar estes
dias. Descobri coisas impressionantes em filmagens caseiras. Mas a que mais lhe
interessará, caro M, trato de descrever: Numa das fitas, há uma festa na nossa
casa de família. Neste cenário tenebroso de grande alegria, observo no fundo da
sala, o meu pai Agripino Alves, ainda solteiro na altura, num cenário de aceso
romance com Violinda Manaia, a mais feia dos Manaias, filha do tenente coronel
Augusto Manaia, e meia irmã de Vivaldo. São filmagens factuais, em formato
documentário, e portanto reais. Depois de recorrer ao melhor grau de raciocínio,
cheguei à conclusão que Faustino Manaia poderá ser meu meio irmão, tendo em
conta a sua idade, e as notórias parecenças comigo. Sempre ouvi dizer que eu
era a sua cara chapada, mas em versão bonita. E as peças encaixam-se, caro
Mara. Estou em estado de choque, pois esta revelação, a confirmar-se, poderá
deitar por terra toda a minha reputação.
Por
fim, e enquanto aguardo novidades do plano de Vivaldo por intermédio da sua
pessoa, informo-o que lhe enviei um pequeno presente pelo correio. Uma embalagem
com os melhores filetes de peixe alpinos, que concerteza farão as suas delícias
nestas noites frias de inverno, e que se não forem comidos com alarvidade, poderão
chegar até ao Natal.
Um fraterno abraço,
Janeiro Alves
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