terça-feira, 22 de julho de 2025

Verso de Nena

 Riefen krieg und wolten macht

Um Poema de Afonso Braga

Amor era a palavra que dizias 
quando a boca se fechava no silêncio da noite como um cravo incendiado 
pela temperatura da idade como um cravo tocado pela morte 
a entrar na vida como um animal à procura de alimento devastando as veias
do teu sangue sumptuoso até outro corpo ser imaginado e outras palavras reflorescerem nas escarpas do teu ventre perfumado a queda 
nos esgotos da eternidade
onde não há tempo nem medo que te obriguem ao amor 

in Locomografia, Editora Atelier Produção, 2009.

CAC: Saber Fazer; Saber Ver

Duas exposições para ver no Centro de Artes Contemporâneas da Ribeira Grande: “Produção Artesanal Portuguesa: A Atualidade do saber fazer Ancestral” e “O Tempo de Estar”. A primeira propõe-se valorizar a produção artesanal portuguesa de norte a sul e ilhas, um olhar múltiplo sobre o saber fazer nacional, quanto à segunda pretende dar relevância à década de abertura expositiva do Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, ao expor obras da colecção do Arquipélago em fala aproximada com obras de outras instituições, galerias e colecções particulares.
         Desta feita, a exposição “Produção Artesanal Portuguesa: A Atualidade do saber fazer Ancestral” acaba por ser uma panorâmica do artesanato nacional, pois  há tapetes de arraiolos, cocharros, viola campaniça ou ainda peças oriundas do arquipélago açoriano, tais como a viola de dois corações (São Miguel) a Joeira de Santa Maria, o Lenço do Faial, entre tantas outras. É a nossa riqueza artesã e beleza dos nossos labores manuais a precisar de ser vista e apreciada. Quanto à exposição  “O Tempo de Estar”, com curadoria de Beatriz Brum e Sofia Carolina Botelho, esta pretende ser uma reflexão com o espaço museológico deste espaço, isto é, pensar a relação dos artistas e do público com este lugar de afirmação artística que perdura no aqui e agora. Parte, por isso, da necessidade de conceber um acervo referencial deste lugar que seja um verdadeiro mosaico da arte contemporânea ao qual se vai acrescentado pensamento, diálogo e memória com outros trabalhos em destaque. 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Conselho

       "Num dos grandes filmes dos anos 2000 - Quase Famosos, de Cameron Crowe - o extraordinário Philip Seymour Hoffman interpreta o papel de um crítico de música da década de 1970 que vai dando sábios conselhos a um jovem jornalista que se prepara para acompanhar a banda em digressão. "Tu não podes ser amigo das estrelas de rock", explica-lhe ele. "Se tu escreves sobre rock, em primeiro lugar nunca vais ganhar muito. Mas vais receber discos de borla da editora. E vão pagar-te bebidas, vais conhecer miúdas, vais viajar de graça, vão ofercecer-te drogas...Eu sei. Parece incrível. Mas eles não são teus amigos. São pessoas que que querem que escrevas histórias grandiloquentes sobre o génio das estrelas rock. Estão a querer comprar respeitabilidade." Este continua a ser o melhor conselho que se pode dar a um crítico, a um comentador, até a um jornalista."

João Miguel Tavares, in Público, 17 de Abril de 2025. 

domingo, 20 de julho de 2025

Da Fobia

          "A xenofobia, por exemplo, é tão larga que poderia incluir várias outras fobias que assentam no medo do que não se conhece. Para combater a xenofobia - tão debilitante, tão estúpida, tão aleatória, tão cruel  e violenta - porque não a claustrofobia?
       A claustrofobia é que é o contrário de xenofobia: é o medo de ficar fechado, de ficar preso, de não poder sair, de não nos podermos mexer.
   Imagine-se a claustrofobia de só podermos comer comida portuguesa (ou lisboeta), só ouvir música portuguesa (ou alentejana) ou só ler livros portugueses (ou minhotos).
        Claustrofobia é o terror de ficarmos fechados em casa,  a aturar a nossa própria família, infinitamente protegidos pelas paredes de pedra da nossa casa e obrigados a proclamar a toda a hora o nosso orgulho de pertencermos àquela cultura tão rica e tão particular. 
        Não há horror que não mereça um horror maior."

Miguel Esteves Cardoso, in Elogio da Fobia Justa, Público, Abril de 2022. 

O Anzol de Raquel Vila Arisa

Lapa Brava, 2024


Atena de Ana Paula Inácio

nem dórica 
nem jónica 

dorsal 
a coluna majestática 
da infância 

das saias 
das irmãs 
a goma barata
rocegando-te 
as pernas descobertas 
do Verão

o pêlo eriçado 
um gato 

in Anónimos do Século XXI, Averno, 2016. 

sábado, 19 de julho de 2025

É na Horta...

Festival Maravilha 
De 17 a 20 de Julho de 2025

 

Pico

Fotografia: Tânia Neves dos Santos 
 

Da Cobardia

     "José Gil tem razão quando nos diz, de uma forma elegante, que nos ficou a cobardia, dos tempos do obscurantismo, temos muita dificuldade em expressarmos livremente o que sentimos. Mas já passaram 50 anos e várias gerações. Não diz, mas digo eu, que preferem mostrar a sua insatisfação através de radicalismos anónimos, expressos, cada vez mais, nos atos eleitorais."

José Gameiro, in Amorfos Felizes, Expresso, 11 de Julho de 2025. 

A Questão

 Tu de quem és? 

Santa Bárbara de Naná da Ribeira

Se foi por acaso não saberei conferir

Antes assim uma descoberta inusitada

No dealbar do estio esta paisagem

Tão singela e tosca nas suas manifestações

A interioridade de terras acidentadas

Beleza e colorido das papoilas e hidrângeas

As móveis nuvens e os verdes tão distintos

Raios a incidir na feição dos plátanos

Benditas chuvas que tombam sobre os campos

Ampliam árvores e o vigor das folhagens

Rasgam muros de sombra no desenho das fábricas

Até ao eclodir do marítimo horizonte

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Verso de Filipe Furtado

 Diz-me se a dor desvanece

Dos Gregos

     "Não há como imaginar o mundo sem a contribuição da Grécia. Está nos mares, nos céus...Não nos conseguimos livrar dos gregos."

Theodor Kallifatides, in Público, 3 de Julho de 2022

Nómadas de Naná da Ribeira

Não resistem por ali muito mais tempo 
Ouvem das casas de passagem ordem de despejo
Mudam-se vezes sem conta e com eles surge 
A vontade de serem lidos em silêncio 
Duvidam, pois, do tempo que ali permanecerão 
Ainda que transportem visões, anseios, melancolias
Sobejando utopias, acalentam permanências 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Antero de Quental

para ti era a chama e não o fogo,
a arca secreta da verdade, 
lugar coberto de dor e pó de lágrima,
onde a memória guarda o sudário do futuro.

Emanuel Jorge Botelho e Urbano in a vida e uma manhã, Publiçor, 2010.

Sistema Naturae#45 de Urbano

Urbano 
Técnica mista sobre tela 
 


As Amoras de Sophia de Mello Breyner

O meu país sabe a amoras bravas 
no Verão
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce 
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo 
me traz amoras bravas 
os seu muros parecem-me brancos 
reparo que também no meu país o céu é azul 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Ciclo Imaginário de Cinema ao Ar Livre(2)

       O segundo filme deste ciclo imaginário de cinema ao ar livre seria para “Maria do Mar”, uma curta-metragem de João Rosas, realizada em 2015, seguido de “The Florida Project”, Sean Baker. O primeiro aborda a adolescência de Nicolau (Francisco Melo), a vida de um jovem que acompanha o irmão mais velho e amigos, num fim de semana estival até à cidade de Sintra. Esta curta-metragem continua a ser uma delicada estranheza, muito pela cumplicidade com que o personagem Nicolau vai estabelecendo com o espectador ao longo do filme. Agora que João Rosas estreou “Vida Luminosa”, e que completa a trilogia, seria de bom tom mostrar este “Maria do Mar”.  Quanto a  “The Florida Project”, o filme de 2017 do super oscarizado Sean Baker, é um fortíssimo cartão postal para conhecer a obra deste realizador. Trata-se da história de uma pequena criança de seis anos de idade, Moonee (Brooklynn Prince), que partilha com a mãe Halley (Bria Vinaite) um apartamento de um motel a beiras com a fantasia da Disney World. Podemos mesmo dizer que não há melhor projecto de enfrentamento de uma canícula abafada e lassa. Este filme é o retrato de uma Flórida à margem, com as contradicções e as típicas aventuras de um mundo precário e plastificado, em que a Disney World surge como a glorificação do desejo humano.

Verão de Naná da Ribeira

Voltamos lestos antes que tudo isto acabe
Estamos agora onde devíamos estar
Ruas nuas, praias de basalto quente 
Arde a fogueira interior dos vulcões
Onde a lassitude impera e o salitre cura 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Citações

       É bom ter livros de citações. Gravadas na memórias elas inspiram-nos bons pensamentos.
Winston Churchil (1874-65), in Notícias Editoral. 

domingo, 6 de julho de 2025

Quarteirão de PDL: A Energia a Despontar

        
Fotografia de Carlos Olyveira
     A Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada reuniu no seu interior, num dos seus múltiplos espaços, um conjunto de fotografias sobre o Quarteirão de PDL. As fotografias encontram-se, assim, espalhadas pelas paredes e pilar de uma sala dedicado à música e aos filmes, sendo que  o seu número é bastante considerável tal como os seus autores. O que une estas fotografias é a memória dos que aqui vivem, trabalham, convivem e usufruem deste espaço citadino que ganhou relevância com a abertura do espaço aéreo, a 29 de Março de 2015. Nascia ali um novo espaço de convivialidade, um lugar feito de cumplicidades e abraços, brotavam quotidianamente encontros, projectos, vontades criativas. Eram uma nova energia que despontava, naquele conjunto de ruas com gente dentro e que começaria a designar-se por O Quarteirão. Tenho, por isso, uma memória viva daquele fulgor, ainda que rápida e fugaz, é certo, mas retenho sobretudo uma lembrança de pessoas, acontecimentos e a uma variada panóplia de actividades artísticas a acontecer. Das muitas coisas por ali vividas, relembro duas ou três situações que gostaria de evocar – a peça na Galeria Miolo “Será que Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?”, com o João Malaquias a solo na Galeria Miolo, o Henrique António  vestido de Filípides, bem como os demais, para a performance/exposição fotográfica “Alvo Périplo Rua Abaixo Movimentado”, da trupe da Sala de Embarque e  do fotógrafo Jorge Kol de Carvalho junto da Igreja do Colégio ou ainda as fotografias do Carlos Olyveira que, quotidianamente, fotograva os seus novos habitantes e espaços. 

sábado, 5 de julho de 2025

Sobre o Caos

         "Em sociedades onde a ameaça é maior, a expectativa é menor e as pessoas não têm tanto medo. O medo é psicológico, somos muito medrosos. Agora andamos cheios de medo dos imigrantes. Têm o mesmo papel que teve os toxicodependentes dos anos 1990, quando andei nos bairros. É o papel do diabo à solta, que veio provocar caos na nossa ordem. Temos sempre que polarizar numa figura qualquer algo que não sabemos resolver que é o caos. Desde o nosso caos interno ao caos social. O nosso caos interno resolve-se projectando as nossas paranoias em quem temos à nossa volta: no filho, na mulher, no sogro, no patrão, na empregada doméstica...a projecção social das frustrações de uma sociedade que não funciona bem, fazemo-la na figura do outro. Hoje, o outro  é o migrante que vem de longe. Não o migrante europeu, não é o norte americano. Não é o sueco que compra casa no Algarve. São aqueles indivíduos que vem para aí  e que, coitados, têm de sobreviver com os os restos que sobram para eles."

Luís Fernandes, entrevista de João Pacheco, Revista do Expresso, 3 de Junho de 2025.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Ilha de Almeida Firmino

Sempre o mesmo horizonte 
-mar, névoa, a ilha em frente
Dizem os garajaus ao voltar
Que não mais será diferente 
in The Sea Within, Gávea-Brown, 1983. 

Crepúsculo na Ilha de Marcolino Candeias

 I
O dia morre como se adormecessem vozes 
nas bocas dos animais 
tecidas
num esvoaçar de sons 


II
O lavrador vestido de suor
planta no bater da estaca 
o gesto último
de querer prender à terra toda a sua vida
 

III
No cheiro a erva 
um sonoro subtil soar do silêncio 
brota um crepúsculo de flores esmagadas 


IV
No ar
paira um odor calado a maresia
in  The Sea Within, Gávea-Brown, 1983.

Ciclo Imaginário de Cinema ao Ar Livre (1)

       Todos os anos, quando a permanência no interior das casas se torna insustentável, dou por mim a imaginar a programação de sessões de cinema ao ar livre, isto é, a propor à minha freguesia de bairro uma selecção de filmes que primem pela qualidade narrativa, uma banda sonora irrepreensível, boa cadência e ritmo cinematográfico. É claro que não posso descurar que haja uma boa amplificação do som e que estejamos todos bem sentados. Assim, será uma boa sessão de cinema ao ar livre em que nada possa ficar de fora. Então, a sessão inaugural teria o filme de Emir Kusturica, Gato Preto, Gato Branco, realizado em 1998. Pela película andam ciganos que habitam nas margens do Danúbio, os seus negócios mal afamados com os russos, desvios de comboios com gasolina de Belgrado com destino à Turquia, uma atiradora furtiva que atira aos barcos sobre as águas e ainda Dadan, o patriarca da comunidade que possui um harém. Enfim, a desbunda típica dos filmes de Kusturica com muita música e charangas à mistura.