quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A Melhor Juventude de Marco Tullio Giordana

“Eu devia ter percebido mas não percebi nada. Talvez não seja verdade e eu tenha até percebido mas foi como aconteceu com a Giulia. Eu podia tê-la impedido. Em frente da porta. Ela virou-se e ainda olhou para mim. Eu fechei a porta e apaguei tudo. Agora, nada resta. As escadas da sua casa, a serradura no chão, os livros no chão, a porteira…Eu devia tê-los impedido. Amava-os aos dois mas não fui capaz de aprisioná-los nesse amor. Era a minha ideia de liberdade em que cada um tem o direito de viver da forma como lhe apetece.”

in “A Melhor Juventude” de Marco Tuglio Giordana

Três Poemas

Poema Um: a Curiosidade

Soube que estava por ali alguém

que se interrogava 
na tarde envelhecida

Enquanto teimavas acender 

um raio na faísca da noite
observavas atento 
uma beleza renascentista 
uma súbita indagação

A inclinação pela abstração

o saber, a dúvida,
a dilatação do dia 
a atracção dos corpos 
benigna inquietação 
daqueles maracujás 
em silêncio. 

 Poema Dois: A Imobilidade


A corda soltou-se do novelo 

preso à distância de um gesto
Dir-te-ia agora frágil
locomotiva parada 
demoro-me entretanto

Houve uma promessa 

verbos oriundos de súburbios
em disputa 
idiomas dispersos 
adormecidos 

Poema Três: Competência Social


Foges 
qual cetáceo em fuga

permaneces embriagado e choras
a ternura comovida 
à espreita

chega de gestos temidos

gorgulhos de falsos viajantes
criam-se raízes em portos 

que se afastam devagar 
nos pulmões da solidão
e retiras-te da promessa 
eterna
de um corpo em trânsito. 

Agenda Terra

Agenda da Tipografia Micaelense

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Como Navios Tristes que partem ao Fim da Tarde (1)

Sabia que ele corria sempre para qualquer lado, parecia um pássaro ferido. Era, à altura, professor de Matemática. Gostava de beber macieira, ingeria muito álcool e usava uma gabardine preta. Sentávamos à mesa do café para falar sobre música. Tinha uns olhos cor de amêndoa demasiado vermelhos, cansados, perdidos, numa cute bastante morena. Nunca soube porque conversava comigo. Provavelmente, devia ser porque ouvíamos os mesmos grupos da new wave apesar da diferença de idades. "És ainda um puto", dizia-me. E eu ouvia-o  mais do que falava. Como eu gostaria de voltar a encontrá-lo. Nunca mais soube nada dele. 

domingo, 3 de dezembro de 2017

Ricardo Ribeiro no Teatro Micaelense: Voltar ao Sul!

       

       Não sei exactamente de onde vem aquela voz, a origem daquele longevo eco, mas lembrei-me do sul. Lembrei-me ocasionalmente do flamenco, viajei também pelas ruas e becos de Alfama, Mouraria e Madragoa. Dei por mim a entrar nas casas de fados, a sentir o cheiro da mistura, da mestiçagem, a calcorreear os degraus e as pedras da calçada da cidade antiga. Apaixonei-me de novo pelas memórias olisiponenses e fui transportado de livre vontade para a desalmada mágoa, a paixão e vício do gosto de existir. Embalado por aquele gesto que, diga-se, julgo ser sido intenso e genuíno, rendi-me perante aquela postura e o timbre dolente daquele canto. Por instantes, o sul era um local palpável, tangível. E...era a voz de Ricardo Ribeiro que me servia de transporte. 

Agradecer Basta

         “É justo e de bom-tom agradecer algo que nos dão ou um serviço que nos prestam, por mais insignificante que este seja. Pode ser uma convenção, mas não o é apenas: representa sempre um gesto de cortesia e de civilidade que sela uma espécie de pacto de entreajuda entre pessoas que se entendem e respeitam. E é também o reconhecimento do esforço do outro. Sempre o fiz e continuo a fazer, mas o inverso – agradecerem-me por aquilo que ofereço a alguém – tem vindo ultimamente a ocorrer cada vez menos vezes, em especial com interlocutores que detêm uma conceção utilitarista da vida social ou têm dos outros uma imagem instrumental.”

Rui Bebiano, in A Terceira Noite, 17 de Novembro de 2017

Um Verso de Morrissey

Please, please, please let me get what I want 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Raul Brandão nos Açores

              
                   «Vinte e seis anos depois da primeira edição, o referido artigo de Pedro da Silveira num prestigiado suplemento literário, em Junho de 1953, não foi suficiente para motivar um editor - nacional ou regional - a reparar no livro, pese embora a ênfase  colocada nas suas qualidades: "Não hesito em classificar as Ilhas Desconhecidas como dos maiores livros portugueses de literatura de viagens de todos os tempos da Literatura Portuguesa.(...) Ao pé disto, tudo o mais que estranhos escreveram acerca dos Açores é música desafinada. As belas páginas de Chateaubriand sobre a Graciosa, o livro dos sagacíssimos Joseph e Henry Bullar, o americano Webster, os escritos de Alberto do Mónaco, de Knud Andersen e de tantos outros podem considerar-se quase nada ao pé de As Ilhas Desconhecidas.»
pequeno excerto do texto "Raul Brandão e os Açores" de Vasco Rosa, in Revista Atlântida, 2017.

Da Ética

    "Deixou de haver ética na criação artística. Deixou de haver compromisso. Deixou de haver sangue. É raro encontrar-se uma obra, mesmo de menor qualidade estética, em que se sinta a preocupação de comunicar."
José Mário Branco, in Ípsilon, 1 de Dezembro de 2017.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

À Noite Vou Cantar à Namorada

À noite vou cantar à namorada
canções que a Lua canta na altura de namorar
ela acha ela acha muita piada
quando eu à noite as vou cantar

Canções que a Lua canta na altura de namorar
à noite eu vou cantar à namorada
ela assoma ela assoma com a continuação era notada
quando eu à noite as vou as vou cantar

E ela acha ela acha a isso muita piada
e eu lá as vou eu lá as vou cantar
que ela à noite ela assoma com a continuação era notada
e a continuação era notada não é para desperdiçar

Assim quando alta noite a Lua é já luar
e ela aparece toda amarrotada
eu imagino-a nua a se deitar
a das canções à noite namorada.

António Gancho, in 'O Ar da Manhã [Semblance]', edições Assírio&Alvim.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Da Atlântida

         
Revista Atlântida com capa de Luís Godinho
"Precisamos de estimular a criação de nova música açoriana., os seus criadores e a comunidade artística em geral. Criar referências contemporâneas, valorizar territórios, defender novos valores, estimular-lhes a experimentar, fazer, mostrar e dar-lhes plataformas de expansão dos seus projectos e carreiras. Eles não são o "artista local" dos cartazes das festas que estão antes das estrelas nacionais e internacionais. Eles são a possibilidade perto de ler o mundo, e de levá-lo além, eles são os Açores de agora. Eles carregam o mundo. Precisamos deles para fixar os artistas na região, despertar a curiosidade do público, envolver a população nos processos artísticos, reforçar a nossa identidade cultural e a identificação das nossas comunidades com a cultura e os seus processos de renovação. Precisamos da nossa comunidade artística para escrever de novo e de novo a nossa história. Eles são o tertemunho do nosso tempo aqui e agora."

António Pedro Lopes, in Revista Atlântida, 2017

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Sobre as lideranças

         "As lideranças ocidentais não têm mostrado criatividade alguma. Mas encontro enorme criatividade na China, por exemplo na ideia que tiveram de convidar todo o mundo a usar a nova rota da seda, a infra-estrutura de estradas e caminhos de ferro e portos que estão a construir. Com esse projecto eles conseguiram abrir África muito mais do que em todo o período do colonialismo. Claro que não estão a fazê-lo só por generosidade, estão à espera de recolher os seus lucros. Mas estão a mostrar como se podem  encontrar novas oportunidades. E os africanos estão gratos. A China tem a vantagem de tratar os africanos de uma maneira muito diferente e melhor do que fizeram os britânicos, os franceses, os belgas, os portugueses. O que se passou no (período colonial) não foi nada bonito." 
Johan Galtung, in Público, 24 de Novembro de 2017