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segunda-feira, 2 de março de 2015

Há Asas Feridas nas Vozes que Vêm do Mar

     
Medeiros/Lucas (Mar Aberto, 2015)
  "No porto deserto/ Só há um navio/Já triste e cansado/ O resto é vazio/ No velho costado/O mar escreveu/Com algas e búzios/O que ele sofreu/O que ele passou/Sulcando oceanos/ Cruéis temporais/ Por anos e anos/ Nas horas sem fim/ Por noites e dias/ Das rotas distantes/ E das calmarias/ Navio parado/ Em frente do mar/ Que bom é partir/Que triste é ficar/ Mistério de longe/Chamando, chamando/Adeus que me vou/Deus sabe até quando.”

Armando Côrtes Rodriguesin  Mar Aberto (Carlinhos Medeiros e Pedro Lucasfaixa nº11, "Navio")

       Conta-me um pescador que todas as manhãs, muito cedo,vai alimentar um cagarro com uma asa ferida no porto da Horta. Diz-me isso neste início do mês de Março, com  alegria, emoção e o brilho dos olhos que eu não consigo descrever com exactidão. Porventura, até sei, mas a realidade neste caso supera em larga medida a ficção. Tudo isto se passa num pequeno café, apelidado de Vinte, com uma vista tão ou mais bela para a Baía de Porto Pim como a história deste biólogo inventado. É um conhecedor profundo de aves marinhas e que se podia fundir com todos os outros seres que habitam no fundo do mar, já que carrega consigo uma voz que é semelhante ao som de um búzio. Por vezes, ao fim da tarde, confirmo com clareza quando me saúda mal me encontra ou avista e é tal e qual como se fosse sempre a nossa primeira vez, pois parece que aquela voz vem do fundo dos tempos, um eco tão antigo que me faz relembrar velhos amigos ou familiares de outras histórias e épocas. Ouço a sua história, omitirei o seu nome, como devem calcular, e desato a recordar imediatamente o “Cantar Na m´Incomoda”, editado em 1998, por Carlinhos Medeiros e produzido pelo Luís Gil Bettencourt. Foram raras as vezes que ouvi os temas desse seminal disco, essencialmente o “Rema”,“Santiana”,ou, concretamente, o “Marujo”, oriundas do cancioneiro tradicional da Ilha das Flores, em que não me devolvessem por instantes a vida difícil desta gente ou que de súbito me reavivassem os seus dias duros e difíceis da faina e a dolorosa existência  destes homens enquanto vivembaloiçam no alto mar. Não raras vezes também que é através do som do mar, no que este tem de mais instintivo, primitivo e primordial, que se misturam em mim as suas vozes com a dos cagarros num linguajar imperceptível entre homens e aves marinhas, impossível de distinguir. Tenho uma admiração indefectível por estes homens corajosos e rudes. Por eles e pelas suas reduzidas palavras, arrancadas com um anzol do tamanho da sinceridade. Ouço-os várias vezes, sempre com atenção, é apaixonante. É como se todo o tempo se condensasse numa única frase melódica, num singular timbre inaudito e criptado, assustador, numa articulação de sons desconhecidos por desvendar. Uma magia viva e transmissível. Acabadinho de ouvir o "Navio", faixa presente em "Mar Aberto", e é exactamente a mesma e deslumbrante emoção. São asas feridas que cavam fundo a dor de querer voar. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Lastro Rubro de um Fevereiro Ameno

        Nuvens feitas farrapos cobrem por instantes o céu que se avista da praia de Porto Pim no declinar do sol. São vários desenhos de nuvens que se estendem até ao horizonte, dispostos como lençóis brancos repletos de curvas e de formas bem compridas. Há, no entanto, um clarão de luz a abrilhantar a cor rubro-alaranjada que emerge ao fundo de um cenário alvo e resplandecente. A noite há-de chegar. E enquanto há reflexos de uma luz flamante resiste-se à caminhada que nos virá a temperar a vista com um azul cerúleo, desbotado, completando assim a solenidade de cores que se agrupam sem se agredir. Acompanha-nos o marulhar das ondas como carneirinhos movimentados a compasso e a talho de despedida de mais um fim de tarde ameno. Não tarda nada e a noite vencerá o dia. Desfeita a ilusão que resta da claridade, recupera-se com esperança aquele momento ténue e reluzente. É noite. A escrita deverá cumprir agora o seu dever do que resta dessa incandescente interioridade.