terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Uma Carta TOP de Janeiro Alves a fechar 2016

Caro Dr. Mara,
          
          Antes de ir directo ao assunto, deveria por precaução certificar-me que o meu amigo goza de uma saúde impenetrável neste mês de Dezembro, e que consegue focar ao longe sem necessitar de lentes, metaforicamente falando. Não sendo possível, parto do princípio que mesmo não estando no auge das suas faculdades físicas e intelectuais, também poderia estar pior, estando portanto reunidas condições para a boa recepção do conteúdo desta carta.
Neste mês que capitula o ano de 2016, que teve tanto de bom como de devastador, à semelhança de todos os outros com excepção de alguns, ando na rua a observar as pessoas e a ouvir as suas conversas, e à noite ligo a televisão generalista no horário nobre, das salsichas. É uma prática ancestral dos grandes pensadores, que assim recolhem como que “fruta fresca” para as suas teorias. Aprende-se muito na observação das massas ondulantes à bolina dos ventos natalícios, como sabe. Hoje trago-lhe algumas actualidades da língua, da melhor língua nacional – a língua portuguesa.
É sabido que a nossa língua já conheceu dias de glória, mas actualmente é desdenhada pela maioria dos nossos conterrâneos. E que sorte é a dum povo que não sabe usar a sua própria língua? “Quando o pensamento é pobre e a língua não ajuda, mais vale uma pessoa ficar muda” – Um provérbio que inventei ontem à noite, e que se tudo correr dentro da normalidade, um dia entrará para o “Grande Livro dos Provérbios”.
Para além de se falar e escrever genericamente mal, surgem por vezes fenómenos populares ou modas temporárias muito curiosas. Este ano há algumas que registei no meu caderno.
A primeira é o uso excessivo da palavra “brutal”. Quase tudo é brutal. Um gajo bêbado a vomitar na estrada é brutal, mas a mulher vistosa a passar na rua também é brutal. Está um dia brutal. A miúda a cantar é brutal. Esta cena é brutal. Que cena brutal! O que dizer então de um assassinato violento, de um acidente em cadeia, de um massacre de guerra, da imponência das montanhas e desfiladeiros, quando uma simples “cena” quotidiana é brutal? O que dizer da expressão “atirai-vos independentes prá sublime brutalidade da vida” do Ultimatum Futurista de Almada? Actualizando a expressão aos nossos dias, teríamos provavelmente: “saiam da vossa zona de conforto”. Brutal!
A segunda moda, algo embaraçante, é o uso da expressão “top”, um estrangeirismo foleiro que segundo algumas fontes nasceu em ginásios lisboetas onde se pratica Cross Fit, Body Jump, Stretching e Core. O que não é brutal, é top, pois convencionou-se a supressão de alternativas. O cúmulo da expressão é dizer-se “este topo de gama é mesmo top”.
Na escrita, assistimos a uma nova tendência de pontuação – os consecutivos pontos de exclamação!!!!! Uma cena brutal cheia de pontos de exclamação é algo do outro mundo. É top!!!
Por sua vez, a comunicação social também marca a sua diferença ao inovar na construção frásica. A tendência 2016 e com provável arrastamento a 2017 é começar uma frase com o verbo: “Dizer também que Mário Soares já respira outra vez”; “Dizer ainda que o tempo se manterá cinzento e encoberto, tal como o meu cérebro de rato”; “Dizer por fim que copio as tendências dos meus colegas que inventam formas parvas de falar porque sou um jornalista top, apesar de desprovido de pensamento crítico”. Doutor Mara, isto é Brutal!!! Mas brutal de bruto, de abrutalhado, de brutamontes se quiser.
E como a carta já vai longa e tenho de ir ali para o Natal, dizer por fim ao doutor Mara que lhe desejo umas festas brutais, cheias de presentes top!!!!!
 Janeiro Alves Top

O Adeus da Cornucópia



           Em Novembro de 2005, pude assistir à  Companhia de Teatro da Cornucópia no Teatro Municipal de Faro. À altura, foi grande o espanto ver uma peça da Cornucópia fora de Lisboa bem como da descoberta de um autor, António José da Silva, com a peça “Esopaida ou a Vida de Esopo”, numa comédia exigente, bem elaborada e difícil e que instigava momentos de riso e até mesmo gargalhadas. Ao mesmo tempo que assistíamos em palco a um actor no máximo da técnica vocal e interpretativa: Luís Miguel Cintra. A Cornucópia sabe-se, entretanto, que irá fechar portas muito em breve, isto é, dar por concluída a sua actividade. Desculpem, será que podem repetir?

Da Filosofia

"Sou mestre em Filosofia o mesmo será dizer que sou mestre em alhos"

Esopo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Zeca Medeiros: palavras para este tempo


Zeca Medeiros (Fotografia Tiago Rodrigues)
        José Medeiros, realizador, músico e compositor, é responsável por muita da música açoriana de referência que podemos ouvir e que, por isso mesmo, permanecerá para sempre na nossa memória colectiva. As suas letras e músicas foram gravadas para programas musicais e séries televisivas: "Mau Tempo no Canal", "Xailes Negros", "Gente Feliz com Lágrimas", "Balada do Atlântico", "O Barco e o Sonho", "O Feiticeiro do Vento", "A Ilha de Arlequim", ou ainda as mais recentes, "O Sorriso da Lua nas Criptomérias" ou “As Sete Viagens de Jeremias Garajau”. Os temas e as canções de Zeca Medeiros encontraram vozes diferentes em intérpretes: Minela, Susana Coelho, Vera Quintanilha, Mariana Abrunheiro, Vânia Dilac, entre tantas outras. Curiosamente é na voz dele que agora apetece escutar os versos finais de “Torna Viagem”: “Se as palavras se cansam no tempo/Este fogo não deixa de arder/Se as canções incendeiam a praia/ Esta noite não hei-de morrer”.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Ele não quer nada no castanho

El Mar

Antes que el sueño (o el terror) tejiera 
mitologías y cosmogonías, 
antes que el tiempo se acuñara en días,
el mar, el siempre mar, ya estaba y era.
¿Quién es el mar?¿Quién es aquel violento
y antiguo ser que roe los pilares
de la tierra y es uno y muchos mares
y abismo y resplandor y azar y viento?
Quien lo mira lo ve por vez primera,
siempre. Con el asombro que las cosas
elementales dejan, las hermosas
tardes, la luna, el fuego de una hoguera.
¿Quién es el mar, quién soy? Lo sabré el día
ulterior que sucede a la agonía. 

Jorge Luis Borges, in Obra Poética, 2 (1960-1972), Biblioteca Borges, Alianza Editorial.

domingo, 18 de dezembro de 2016

"Menina" em estreia no Teatro Micaelense

"Menina" é o novo álbum de
Cristina Branco
            Um disco acabadinho de chegar aos escaparates e ali está, Cristina Branco, mais a sua banda, em palco no Teatro Micaelense. “E às vezes dou por mim”, com  letra de André Henriques (Linda Martini), inicia a ponte para uma grande noite, já que atente-se nos versos da canção que abre o mais recente álbum “Menina”: “E às vezes dou por mim/Quando ninguém está a ver/Ser que é por tanto crer/Que ninguém me quer/Sozinha na moldura/Na casa dos meus pais/Dizem que estou madura/E eu não quero esperar mais”. Como pano de fundo, discreta e imponente, a guitarra portuguesa, aqui tocada exemplarmente por Bernardo Couto. Seguiu-se uma hora e meia de espectáculo musical com muitas e bonitas palavras, ainda a intensidade da partilha. No final, desfeito o gelo, os músicos voltaram ao palco para encher de novo o coração de lindas melodias, frases e versos controversos de  gente cheia de alma. Certo é que foi um belo serão musical. Estamos, sem qualquer dúvida, na presença de um disco orelhudo que merece a repetição da escuta.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Eu, Daniel Blake

         
(daqui:www.slate.fr)
 

        "A lógica do sistema está pensada na actualidade para aprisionar as pessoas, apanhá-las em falso. Há uma discriminação terrível nos centros de emprego que tende a submeter as pessoas. É uma lógica mais importante do que haver ou não haver trabalho. Haver trabalho há, mas também há discriminação na forma como são filtradas as oportunidades. E há uma questão ideológica por detrás disto: tudo está feito para que as pessoas interiorizem que se estão desempregadas, é culpa delas, são pobres, é culpa delas."

Ken Loach, in Ípslon, Público, dia 2 de Dezembro de 2016

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Corpo Ardeu

Atirámos um homem do penhasco abaixo.
Toda a aldeia reunida no adro;
corremos sobre ele aos gritos
fizemo-lo cair de grande altura.

O padre disse que agora, sim, é
que começa a verdadeira vida
e eu pensei com muita força e muita fé;
mete a verdadeira vida no cu.

Acordo a meio da noite com os uivos das pessoas
Prendem um homem no manicómio
atam-no à cama, enfiam-lhe comida
pela goela abaixo, engordam-lhe o fígado.

Ele tinha um anjo dentro da cabeça
sempre a levá-lo, a voá-lo muito
para lá das nuvens, repuxava-lhe os fios
forçava-o a uns esgares, uns dizeres obscenos

Quando o deixava planar a meia altura
a uns quinhentos metros, digamos, uma
corrente inesgotável de lenços coloridos
saia-lhe da cartola, com as músicas mais belas.

Tanto medo da loucura,
tantas verdades incómodas ali à mostra,
tantos segredos insuportáveis.
Vamos estabilizá-lo, disseram.

Quero escapar, morrer,
arder-vos por entre os dedos,
ó boas pessoas, ó sãos de espírito,
ó assassinos, adeus.

João Paulo Esteves da Silva, in Doutor Tristeza, Mia Soave, 2015. 

Da Amizade

«Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte.»       
Mário Dionísio

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Carlos Olyveira: Fotógrafo dos Dias que Passam!

A cidade é campo aberto para a respiração. Respiramos as ruas, as casas, os sólidos, corpos e luzes em movimento. Desse exercício diário de aproximação à existência vemos apenas aquilo que realmente importa, dedicamos especial cuidado à delicadeza dos gestos e prestamos ainda uma atenção inusitada pelas coisas que diariamente se repetem. Repetidamente, também nós, por aqui, vivemos e, tal e qual Bresson um dia disse: "Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração".
         A partir dessa rotina e dos hábitos que se instalam estamos, portanto, preparados para nos concentrarmos naquilo que muitas vezes nos parece descabido, focados nos gestos mais banais ou inesperados ou, quem sabe, detidos na permanência insistente dos traços que julgamos ser comuns. Um distinto louvor à passagem do tempo. Eis, então, que entra aqui o fotógrafo, enquanto conhecedor da urbe e do seu pulsar, narrador curioso por calcorrear os seus recantos e buscar a vida no interior das ruas e rostos de personagens conhecidos. A visão do fotógrafo fixa, portanto, cada instante que passa, obedecendo aos humores das sombras e da luz. À semelhança deste seu olhar, espreitamos também com ele o quotidiano trânsito da ilha em viagem, tornamo-nos cúmplices da sua paisagem e movimento. Alimentamos o corpo com estas imagens para de novo vibrar com a existência, afagando e abraçando estes registos enquanto diário visual, reconhecendo o corpo citadino e as suas indissociáveis figuras. Acompanhar este olhar carece de continuidade, de expressão e reflexão crítica. Contemplemos pois, a repetição dos gestos tal qual a cidade e os dias que julgamos ser nossos, pois é assim que acreditamos estar vivos. Carlos Olyveira é o fotógrafo dos dias que passam!

Soneto 34

Porque me prometeste um dia assim tão belo
E me fizeste andar sem que usasse o meu manto,
Deixando as nuvens baixas tomar o meu caminho
Escondendo o seu fulgor em nevoeiro imenso?
Não te basta brilhar pelas nuvens envolto
Pela tormenta, pois que não chega unguento
Que cura a ferida, mas não cura a desgraça?
Nem a tua vergonha me conforta o tormento:
Que a culpa do que peca traz só alívio leve
Àquele que mais sofre e suporta a ofensa.
    Mas as lágrimas suaves que o teu amor me dá
    São ricas e resgatam todo o mal que me fazes.

William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

Da Personalidade

"É muito estranha a facilidade com que as pessoas têm tendência para avaliar as outras isolando apenas algumas partes da sua personalidade."

Sigmund Freud, Correspondência (1910)

A Cada Um o Seu Olhar

Fotografia Carlos Olyveira