sábado, 27 de abril de 2024

Volto Sempre ao Café Central

Volto sempre ao Café Central, ao da Ribeira 
Grande. As chávenas já não trazem a desenhada letra
Café Central
anunciam somente a marca do fornecedor, creio
que nunca bebi por uma dessas chávenas antigas. As cadeiras,
pesadas, no confronto da madeira e do aro de ferro que 
lhes dá forma. (Passo os olhos pelo Açoriano Oriental, mais 
manso nas suas invectivas.)
Na última prateleira da vitrine, altivas, as três últimas bandeiras 
a banca, a azul e branca
em pleno coroadas, a republicana
(em desespero de cor, mas não é esse o mais
caminho português?)
têm por baixo, alinhados como se fossem soldadinhos de chumbo, 
um pelotão de açucareiros em desuso.

Em fila, potes antigos de faiança
capazes de resistirem à pedra funda de pastor

e além do vidro grande da montra 
as janelas, as portas do teatro

e a dona Zélia pergunta-me quantos dias vou ficar. Ficar, chegar,
partir. No jardim
os metrosíderos cobrem-se de pisado vermelho
flor de sangue, o sentido desses verbos

depois, a água  em queda na ribeira
quando subo a rua do Barracão velho.


João Miguel Fernandes Jorge, in "Lagoeiros", Relógio D´Água, Novembro de 2011.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Verso de JP Simões

 Se por acaso me vires por aí

Música para os 50

 -Canto do Amanhecer - Asas Sobre o Mundo, 1989  - Carlos Paredes
-Quando a Alma Não é Pequena - Quando a Alma não é Pequena, 2006 - Dead Combo
- Que Amor Não Me Engana - Venham Mais Cinco, 1973 - Zeca Afonso
 - Mai 86 - Querelle, 1987 - Pop Dell´Arte
-Taxonomia - Errôr, 2019 - Linda Martini
-Canção a José Mário Branco - 2 de Abril, 2022 -A Garota Não
-Que Força É Essa - Sobreviventes, 1972 - Sérgio Godinho
-Lembra-me um Sonho Lindo - Por este Rio Acima, 1984 - Fausto
-Queixa das Almas Jovens Censuradas - Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, 1971- José Mário Branco
-Soldado - Sitiados, 1988 - Sitiados
-Sete Naves - Os Homens Não se Querem Bonitos, 1985 - GNR
-Como um Cavalo Louco - Um Zero Amarelo, 1998 - Um Zero Amarelo
-Hino à Nossa Luta - Divergências, 1986
 - Linha Geral

Desconfiava que isto iria ser assim...

    "-Sim, é certo, eu desconfiava que isto iria ser assim”. afiançou com toda a pujança. “-Assim, como?”, perguntei. Naquele precioso instante desfilavam na minha memória imagens de pirolitos frescos a escorrer pela garganta, bicicletas exangues encostadas ao musgo das paredes, tardes de praia temperada com barracas de tiras azuis a proteger da nortada, numa frase ouvida e repetida numa eternidade:“-Vem aí os Canhões!”.  Enfim, cinquenta anos passaram sobre o momento histórico e até parece que tudo isto não passa de uma canção que ressoa a liberdade em cada um de nós na hora de voltar à carga. Valha-nos, pois, essa palavra leve e verdadeira com que cunhamos a efeméride. Uma palavra que pretendemos justa, como carne vivificada em nós, uma elevação maior perante o que ainda poderemos fazer no futuro. “É pouco”, diz-me quem já não acredita que se possa ter como lema existencial o archote da esperança! “Talvez”, apaziguo-lhe a raiva e confirmo-lhe a incerteza do tempo sombrio que nos calhou viver. Reafirmo, no entanto, que a mágoa do abandono é grande e não é só desta pessoa em concreto mas também por tudo aquilo que foi amado e que já não volta, e por isso faço questão de relembrar esse gesto inicial que retoma agora à sua fonte principal e, quem sabe, ainda se possa renovar. Acreditemos!

domingo, 14 de abril de 2024

Da Mudança

              Ninguém duas vezes passa o rio, porque os rios se afastam para morrer.
                                                                                                   Luiza Neto Jorge

domingo, 7 de abril de 2024

Anatomia de Uma Queda

Filme de Justine Triet, 2023
  Sandra Huller possui um rosto enigmático, perfeito para narrativas indagadoras. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Trier, é o filme perfeito para uma actriz misteriosa, um casal em crise  e uma explanação duradoura sobre um homem que cai do alpendre da sua própria casa em reparação. Justine Trier filma inicialmente os rostos da perda, uma mãe e um filho que, cada um à sua maneira, estabelecem as coordenadas sobre o que pode ter acontecido. Pelo meio, há pistas e vestígios desse acontecimento inesperado. Por último, há um julgamento inverosímil que fortalece ainda mais o enigma, o mistério, o segredo. O rosto esfíngico de Sandra Huller permanece!

Música Para Abrilar

 -Real House - Bright Future, 2024 - Adrianne Lenker
-No Café - Crime, 2017 - João Paulo Esteves da Silva
-Love Comes to Me - The Letting Go, 2004 - Bonnie Prince Billy
-Baby - Gal Costa, 1968 - Gal Costa e Caetano Veloso
-Mary Boone - Only  God Was Above Us, 2024 - Vampire Weekend
-Irene - Cavalo, 2014 - Rodrigo Amarante
- Island Life - Hadsel , 2023 - Beirut
-Another Night - Curtains, 1994 - Tindersticks
-Don't Know How To Keep Loving You - Crushing, 2019 - Julia Jacklin
-White Fire - Burn Your Fire For No Witness, 2014 - Angel Olsen
-Terminal Paradise - U.F.O.F., 2019 -  Big Thief
-Syreeni - Lilla, 2022 - Anna Järvinen

Ontem, escrito numa parede da cidade

 Já reparaste que estou aqui?

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Verso dos Vampire Weekend

 Oh, my love, was it all in vain?

Um Tal de Fernando Assis Pacheco

Vivo com ele há anos suficientes 
para poder dizer que o reconheceria 
num dia de Novembro no meio da bruma
é como uma pessoa de família

adorava os pais mas tinha medo
quando zangados se punham aos gritos
e se chamavam nomes odiosos
não invento nada vi-o crescer comigo

chorava então desabaladamente 
e eu com ele sentindo-nos perdidos 
o cobertor puxado sobre a cabeça 
seria trágico se não fosse ridículo 

mesmo depois a noite que urinasse 
no pijama era um protesto civil 
encharcou assim grande parte das Beiras 
não lhe perguntem se foi feliz 

Fernando Assis Pacheco, in Respiração Assistida, Lisboa, 25 de Maio de 1995

quarta-feira, 3 de abril de 2024

"Meu Nome É Gal": o Brasil da Tropicália!

Filme de Dandara Ferreira e Lô Politi
Cartaz daqui: https://www.doistercos.com.br/


        Filme à volta da vida e das canções da cantora brasileira Gal Costa. A intérprete é Sophie Charlote que encarna a tímida cantora que, no fim da década de sessenta,   vai da Baía até São Paulo e depois pousa nas águas cálidas do Rio de Janeiro, sempre com o fito de se tornar cantora, ou como terá dito, João Gilberto, "Gal - a maior cantora do Brasil".
      O registo é enérgico e melancólico, não podemos esquecer que se trata do Brasil da ditadura militar e, sobretudo, da vontade de igualar as modas e as novidades que chegavam do norte, sendo também esse o desejo da sua juventude. O que foi, afinal, o movimento Tropicália? Abalo e força desse desiderato juvenil ao absorver os sons e ritmos provenientes da cultura anglo-saxônica,  à altura, irradiante e dominante, dando-lhe, assim, o seu cunho tropicalista. No fundo, pretendiam dar a conhecer esse Brasil em mudança que ousava arriscar e se projectar no futuro, tal como a letra desta canção: “Você precisa saber da piscina/Da margarina, da Carolina, da gasolina/Você precisa saber de mim/Baby, baby, eu sei que é assim”. Belo e sedutor filme sobre uma das grandes vozes da música popular brasileira.