Ritualmente era assim: o jornal
estava pronto, mas a rotativa não andava. Não porque tivesse enguiçado. O que
emperrara durante décadas foi a vida dos portugueses. Para além de notícias de
retórica e de assombrosos artigos de opinião fortemente tutelados pelo poder
instalado, pela mentira e pela fraude, as salas de redacção dos jornais eram,
por isso, um mórbido sítio onde, de entremeio com cinzeiros a abarrotar com
“beatas” chupadas até ao queimar os dedos e envelopes de telegramas da agência
noticiosa oficial, ardiam os valores e a dignidade de quem tinha que engolir em
seco as tramóias da censura. Cada golpada dos agentes do regime era um soco no
estômago a quem, porventura, arriscasse pôr o pé em cima do risco que limitava
a mentira, o frete ou a subserviência ou então, simplesmente, dizer a verdade.
O que não chegava às secretárias já escrito pelos fazedores de uma opinião
pública cada vez mais tacanha e enriçada numa teia que o fascismo foi urdindo,
era logo condicionado ao tratamento que os todo-poderosos entendiam ser
divulgável. “Não referir”, “Não mencionar”, “Proibido desde aqui até ali”, “Proibida
a divulgação” e outros que tais, eram epítetos utilizados pelos censores
para controlar os jornalistas e o País. Uma batalha, de resto, com um vencedor
previamente anunciado. Para isso lá estava atenta, veneradora e obrigada, a
truculenta Pide de má memória no seu zeloso serviço de…servir a Pátria. A funda
de David, em vez alguma, poderia largar uma pedrada num olho de Golias.
Esqueceram-se, porém, que os dinossauros de há muito que estavam extintos e que
as imitações são, normalmente, de duvidosa qualidade. Apodrecem e cedo cheiram
mal.
Hoje, vinte e três anos depois,
as rotativas imprimem os jornais logo que as redacções entendem que o trabalho
está feito. Fulano de tal, a atingir os quarenta e que na altura usava calça
curta, há-de lembrar-se das idas diárias ao escritório do censor com a prova
final do jornal para que, finalmente, a máquina pudesse andar. Mas agora, na administração
do mesmo periódico, já não têm que mandar “o rapaz” à censura. Mal acaba esta
crónica – sou sempre o último a chegar – o jornal estará na rua. Mãos à obra,
amiga impressora, que a tinta já está no tinteiro.
José Daniel Macide, 23 de Abril de 1996
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