O inédito sucedeu-se agora quando
nos deparamos neste momento com o Doutor Mara, em pleno aeroporto e de malas prontas
para demandar viagem. Ele está com o semblante carregado de quem dormiu menos
do que as oito horas habituais. O inefável Doutor Mara traz consigo um canudo
muito branco, com uma camélia dentro, e transporta consigo um jornal com as
folhas bem amarelas, com notícias muito, muito atrasadas, crê-se do ano
anterior. A sala do aeroporto, porém, pára de cada vez que o Doutor Mara pega
no jornal para ler o rol de notícias do ano anterior.
DM: Doutor Mara, soubemos que irá partir, por que é que nos abandona
num momento tão crítico como este?
Doutor Mara: Não vos irei abandonar, meus caros, simplesmente vou
para um lugar muito pequeno, aconchegado do mundo, a meio do oceano atlântico.
Preciso de ler a poesia portuguesa contemporânea, aquilo a que chamam agora os
novíssimos da poesia portuguesa, pretendo lê-los de uma assentada bem como dedicar-me
com afinco à produção de vinha e à moagem de cereais de forma tradicional. Quero
concretizar um sonho antigo do período em que me considerava um digno
representante do socialismo acrata ou anarquismo, como lhe queiram chamar, isto
é, o período em que pretendia ideologicamente tornar-me auto-suficiente e
recusar qualquer intromissão do aparelho estatista e da sua presumida ordem.
Terei pão, vinho e poesia…o que é que um homem pode pedir mais?
DM: Fecha assim as portas a
uma intervenção política e quem sabe vir um dia a honrar um compromisso público?
Doutor Mara: Nos próximos tempos está fora de questão uma
intervenção púbica. Quero por agora viver coisas que não a coisa política.
Continuarei de forma honrosa a defender todos os métodos participativos e
comunitários: o associativismo, o sindicalismo ou as agremiações de bairro. Estou
e vou continuar sem chefias, sem vaidades, sem “status”, sem partidos. Por
agora, o que eu quero essencialmente é ler poesia e ter pão à mesa...
DM: Mas doutor hoje não ninguém lê poesia, os poetas editam trezentos exemplares
por cada livro, no entanto somos neste momento auto-suficientes e excedentários
no que ao vinho diz respeito. Há mais alguma razão para além destas evocadas,
doutor? Decididamente, não compreendemos…
Doutor Mara: Hmmm…é certo que recuperei uma casa rural, uma adega e
um moinho do século XVI que não posso recusar. Os donos estavam falidos e entregaram
aquilo às finanças locais, por isso espero passar lá umas temporadas valentes,
longe do mundo e sem acesso a qualquer tipo de informação ou contacto com o mundo
exterior. É, sem dúvida, um retiro, um retiro desejado, como podem imaginar e,
neste caso, certamente respeitar. Pode ser?
DM: Claro que pode, doutor. Não deixa de ser estranho, caríssimo Doutor
Mara, num momento em que acabamos de saber que em caso de encerramento de
fronteiras conseguiríamos que ninguém morresse à sede, pois sabemos o quanto o doutor gosta de um bom
copo. É certo que não abandona Portugal, mas porquê este súbito desapego à
pátria e ao seu destino, este afastamento inédito da sua comunidade de
pensamento. Não declare que ficou ofendido ao saber da nossa grande dependência
de produtos da indústria de pesca?
Doutor Mara: Se fosse só por isso e…esqueceram-se novamente dos
cereais? Meus amigos, vocês sabem tão bem como eu que o mais importante é aquilo
que é distribuído por todo e tem que haver um equilíbrio entre a economia e o
bem-estar dos cidadãos dos países. E como poderei aceitar que num país de dez
milhões a tiragem de um livro de poesia seja de trezentos exemplares, às vezes,
nem isso? E que haja filmes portugueses reconhecidos nos festivais de cinema
que não tenham o eco devido bem como o reconhecimento merecido junto da
população indígena. Ou que um jornal de referência venda apenas vinte mil
exemplares? Não me digam que é por falta de incentivos…um livro de poesia, um
jornal, um conto pode ler-se numa viagem de autocarro, de avião, ou mesmo de
riquexó…que semidiâmetro de país é este que condena à fome os seus cineastas,
poetas, os seus editores, os seus melhores escritores ou mesmo jornalistas???
DM: No entanto, há boas notícias, doutor, em caso de calamidade,
conseguiríamos sobreviver sem grandes sobressaltos com aquilo que produzimos em
termos de hortícolas, carne, ovos, leite,
frutos frescos e conservas de peixes. Não fica feliz por isso?
Doutor Mara: Claro que fico. Sempre gostei de uma boa lata de conservas num parque de campismo e sempre que realizava um inter-rail municiava-me das mais variadas conservas com os seus magníficos rótulos. Certo é que se esqueceram que continuamos a consumir muito bacalhau vindo do exterior, muitos congelados, secos e salgados. O que nos vale são os moluscos que pescamos em grandes quantidades, mesmo que seja a agricultura e a indústria as nossas maiores fontes de riqueza alimentar. Agora para o sítio onde vou levo apenas comigo uma lata de polvo em calda, mas não tenciono comê-la, é só para me lembrar no que estamos metidos quando atingir o ponto máximo do saudadómetro.
Doutor Mara: Claro que fico. Sempre gostei de uma boa lata de conservas num parque de campismo e sempre que realizava um inter-rail municiava-me das mais variadas conservas com os seus magníficos rótulos. Certo é que se esqueceram que continuamos a consumir muito bacalhau vindo do exterior, muitos congelados, secos e salgados. O que nos vale são os moluscos que pescamos em grandes quantidades, mesmo que seja a agricultura e a indústria as nossas maiores fontes de riqueza alimentar. Agora para o sítio onde vou levo apenas comigo uma lata de polvo em calda, mas não tenciono comê-la, é só para me lembrar no que estamos metidos quando atingir o ponto máximo do saudadómetro.
DM: Saudadómetro?
Doutor Mara: É um medidor da saudade…comprei-o há muitos anos numa
dessas romarias populares conjuntamente com três lençóis vendido pelo preço de
dois. Aproxima-se o objecto da mão direita e espera-se que o ponteiro indique o
estado de saudade em que se encontra. Houve um momento em que estava de tal
modo apaixonado que o ponteiro ficou colado no lado direito…tive que esperar
uns dias até que a saudade ficasse pelos 96, 97, 98 por cento.
DM: É pena esta saída extemporânea do Doutor Mara, sobretudo agora que se
fala na criação de um bom cartaz de teatro na televisão, vários campos de golfe
bem drenados e uma panóplia variada de restaurantes japoneses. É, sem qualquer
dúvida, um momento muito triste para todos nós a sua partida, doutor.
Doutor Mara: Para ser franco, nunca gostei muito de sushi. Depois
vocês sabem que não vejo televisão e quanto ao golfe é certo que vi durante muitos anos mas sobretudo em
dvd...bastavam duas tacadas para adormecer…ficava, sem qualquer dúvida, mais
barato que um calmante.
DM: Doutor, se não é indiscrição gostaríamos de saber qual foi o lugar
escolhido para este retiro, ao qual, muito sinceramente, esperamos que seja
breve?
Doutor Mara: Se não me levam a mal, não posso revelar.
DM: Muito obrigado, doutor. Boa viagem!!!
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