Inacreditavelmente conseguimos um
número de telefone de uma pequena barbearia atlântica onde o Doutor Mara
costuma frequentar por volta das 14h55, essencialmente para tirar dois dedos de
conversar e colocar “os pontos nos is”, como se costuma dizer. Confessam-nos, no
entanto, que o Doutor Mara somente permanece meia-hora nesta barbearia-café
intitulada “Capilar Menos”. Às vezes irritam-se com ele pois ele sai à hora
certa, nem segundo a mais, nem segundo a menos, pedindo desculpa pela sua saída
cronometrada todos os dias à mesma hora. Avisaram-nos também que ultimamente só
fala de clássicos de cinema e que tira grandes noitadas para ver dois, três
filmes, no seu moinho austero e recuperado. Às vezes constatam também que ele
diz um ou outro poema de cor e salteado, fazendo menção ao nome e biografia
literária de um novíssimo poeta português que aproveita para citar. De qualquer
modo, esperemos, no entanto, que ele fale connosco pois há muito, muito tempo, que não temos notícias dele. A ver vamos o que nos reservam as linhas
telefónicas…
DM: Estou sim, Doutor? Doutor…somos nós…Doutor Mara…que balanço é que
faz deste seu retiro que nos parece já uma eternidade?
Doutor Mara: Estou sim…estou a ouvir muito mal, há muitos cortes e
estranhas interferências. Estou? Estão a ouvir-me? Sim? Os chatos do costume…Balanço?
Se querem que vos diga a verdade, durmo muito mais descansado nestes últimos
tempos. A acrescentar o facto de já não ter olheiras, papos à volta dos olhos
ou insónias prolongadas. E, no entanto, nunca me senti tão vivo como nestes
últimos tempos. Ser produtor das coisas que como e bebo deixa-me muito mais
sossegado e pronto para viver uma vida nova. Já agora pergunto-vos, alguma vez vos
aconteceu isto?
DM: Evidentemente que não,
doutor. Estamos verdadeiramente contentes com aquilo que está a acontecer
consigo. Por acaso, ainda não nos aconteceu esse êxtase existencial mas é um
facto, gostaríamos muito que um dia isso nos acontecesse. No entanto, deixe-nos dizer que nos parece
um doutor Mara renascido, com um elixir da juventude, ou será que é
consequência de uma vida mais próxima da natureza?
DM: Doutor, sessões de cinema num moinho restaurado e aberto ao
público??? Mas, Doutor Mara, isso era um sonho de qualquer cineclubista há
trinta e nove anos atrás…mas conte-nos, aparece muita gente nessas sessões e
que tipo de pessoas é que frequentam o seu moinho?
Doutor Mara: Há dias apareceu o senhor João Rafael, com oitenta e
dois anos de idade, produtor de mel. Estivémos a ver o filme “O Apicultor” (O
Melissokomos, 1986), do grego Theo Angelopolous, com o Marcello Mastroianni num
dos seus melhores papéis. Um filme bem diferente destes últimos acontecimentos
que nos tem dado a ver a Grécia. O personagem Spyros vagueia entre colmeias e
pólen, deixando para trás o seu cargo como professor e a sua relação com a
esposa. Spyros é acompanhado por uma jovem perdida e ambos buscam o amor numa
paisagem grega de desolação e de dor. No final, era ver o João Rafael chorar e
perguntar a todos os presentes como foi possível ter sido privado durante a sua
existência da cinematografia daquele cineasta grego. Agora volta sempre
acompanhado da sua neta de vinte e dois anos que quer ser realizadora de curtas
metragens…
DM: E os jovens também se interessam pelo cinema que passa no moinho?
Doutor Mara: Há de tudo como na drogaria…há três dias veio cá um
jovem, cerca de 27, 28 anos de idade, com um documentário do Chris Marker, “O
Comboio do Cinema” ("Le Train en Marche", 1973), versão francesa e
sem legendas, numa cópia restaurada. O rapaz dizia estar cá de passagem, a
fazer um retiro de silêncio, apenas interrompido com este filme que disse querer
ver há muito tempo e que nunca tinha tido oportunidade. Ainda hoje não sei onde
é que ele foi buscar a bobine do filme. O moinho estava cheio de agricultores e
pescadores, pois tínhamos acabado de confeccionar um “Brasas e Braseiros” com
peixe variados e muito bem regado com vinho da região, para além de ter tido o
cuidado de mandar retirar mais quatro “pufes” com palha improvisados da cave. Começámos
a ver o documentário, que ficou célebre com aquele discurso fantástico do Medvedkin,
cineasta russo, que nos conta a experiência utópica e invenção do comboio
cinema que percorreu o interior da antiga União Soviética, para lá das centenas
de filmes feitos e perdidos, mandados destruir pelo Estaline. No final, o jovem
estava extasiado com o documentário, no entanto, constatou que à sua volta que alguns
dos presentes, após uma longa jornada de trabalho, se encontravam já em pleno
sono. Então, decidiu pôr-se em altos berros e acordar toda a gente, apelidando
os presentes de intelectuais do sistema, uma linha fiada de burgueses e
integrados na conspiração da alta finança e que devíamos ir com ele por aí de
comboio mostrar o cinema às populações incultas, alienadas pela televisão e pelo
facebock, etc e tal. Esqueceu-se, no entanto, que por aqui não há linhas de
comboio…
DM: Já vimos, então, que as sessões cinematográficas bem animadas?
Doutor Mara: Na primeira noite em que abri o moinho aos amantes do cinema
deste lugar tive o cuidado de exibir o “Cenas da Vida Conjugal” do Ingmar
Begman. Após visionamento do filme, o público estava inquieto, desassossegado,
e implorou para ver a sequela que o realizador sueco tinha feito há bem pouco
tempo e com os mesmos actores: “Saraband”. Quando o filme terminou, o sol
raiava no exterior, e ninguém se entendia sobre a noção de fidelidade e o que
era verdadeiramente essencial para manter uma relação em funcionamento durante
muito tempo. Houve quem concordasse com a referência à frase que o actor Erland
Josephson fez a um padre que ele tinha conhecido...
DM: - "Uma vez um padre disse-me que o amor tem duas componentes: uma
boa amizade e um erotismo inabalável"?
Doutor Mara: Sim…essa. Foi deveras um debate interessante…terminou
ao meio-dia do dia seguinte com uma alcatra de peixe com arroz branco.
DM: Ouvimos, entretanto, dizer que passa muito tempo a ler os
novíssimos poetas portugueses, é verdade?
Doutor Mara: Nem por aqui consigo estar sossegado…quem vos disse
isso??? E…com este poema intitulado “Mudar de Casa”, do José Miguel Silva, alegremente
me despeço: “É bom mudar de casa, de janela,/arrumar de outra maneira as ilusões,/tratar
de coisas puras como tintas/e sofás, pôr ordem entre os livros/e a vida,
simular a liberdade./Parece-nos possível voltar a acreditar/na mão que nos
estende um pé de salsa,/na pechincha da beleza, quando passa/ no poente da
razão./Apetece cometer uma loucura,/comprar um telescópio, decorar/o canto nono
dos Lusíadas,/subir umas escadas do avesso,/pensar que nunca mais teremos frio.”
DM: Um grande abraço, Doutor. Muito obrigado por este bocadinho…havemos
de voltar a incomodá-lo. Com sua licença, até à próxima.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Cinepoemagrafia
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