Caro Doutor Mara,
Encontro-me preso numa casa de banho de um centro
comercial, e aproveito para lhe escrever. Já tentei escapar por debaixo da
porta, mas quando tinha o corpo já quase todo do lado de fora, a cabeça não
passou. Foi por pouco. Já bati à porta, já gritei por ajuda, e acabei de ligar
para o 112, pois estou na posse de um telefone. Infelizmente não me levaram a
sério. De resto ninguém me atende o telefone, e aqui estou. A olhar para quatro
paredes sentado na sanita. Há alguns minutos entrou um indivíduo a assobiar,
fez de conta que não me ouviu. Não entrou mais ninguém. De repente as pessoas
deixaram de vir à casa de banho, de propósito, para me deixarem aqui.
Há já alguns dias que pressentia que me andavam a
preparar alguma. Mas eu finjo que estou bem, que não é nada comigo. Já nem faço
barulho. Não lhes quero dar o prazer de observarem a minha angústia com um
prazer perverso, como quem vê o National Geographic e se deleita a observar um
herbívoro galopante a ser encurralado por uma cambada de leões esfomeados. Não
dou o braço a torcer. O Doutor Mara sabe como sou um osso duro de roer. Enfim, a
noite aqui é garantida, pois já é uma da manhã, e os poucos que ficaram para o
cinema já saíram concerteza. Os seguranças devem estar a enviar mensagens,
aborrecidos por não se passar nada. E eu aqui. Eles sabem que eu estou aqui, eu
sei que eles sabem. Mas não querem saber, de propósito. Eu também não quero
saber, tenho mais que fazer. Tenho assuntos para tratar. Não lhes vou dar o
prazer de passar pela vergonha decorrente de uma libertação ridícula, de me
virem salvar como se fossem uns heróis. De ser o bombo da festa enquanto eles
são condecorados com medalhas de mérito. Já me convenci que passarei aqui a
noite. Na verdade isto é uma espécie de suite desprovida de quarto.
Apesar
desta situação embaraçosa, escrevo-lhe para saber de si. Como tem passado o meu
amigo? Já tive conhecimento que figura de novo no portfolio das ilustres
figuras Fayalenses, que regressou à casa partida, que deu uma volta de 360
graus, que afinal o filme era uma saga de duas partes, que suprimiu o espaço
físico que o separava da origem, que se voltou a banhar nas águas tropicais da
exótica baía de Porto Pim, e que o Pico agora o volta a perseguir como um vulto
incontornável.
Também
sei que aguarda ansiosamente novidades dos Manaias. Estão falidos. Filomeno
Manaia, o gestor de toda a herança acabou por investir acções num banco que
faliu e falaciosamente mudou de nome. Neste momento, alguns Manaias já estão a
trabalhar em call centers, enquanto
que outros fazem espera na fila do centro de emprego. Uma calamidade social,
Dr. Mara. Todo o património da família está agora nas mãos de gestores de
insolvência, homens vestidos de negro, com barbas escorridas e pasta na mão,
que cheiram a môfo e levitam à volta dos velhos Manaias. Miriam soube disto em
Inglaterra, e regressou de emergência a Viseu, a tempo de evitar que Clemêncio
Manaia pusesse termo à vida com uma corda ao pescoço. Passou por Lisboa logo
após. Almoçou comigo e pôs-me a par de toda a história. Filetes de pescada,
junto ao rio, em sua homenagem, Dr. Mara. Miriam confessou-me que tem saudades
dos velhos tempos, quando passeava consigo de mão dada pela Matriz, e dos
choques que apanhavam quando tocavam em metal. Ela quer visitá-lo em breve. Registe.
O
Solar dos Manaias está agora à venda. É uma machadada na história, Dr. Mara. É
o fim de infindáveis acontecimentos antológicos, do baluarte de muitos serões
que figurarão nos anais da cultura nacional. É o fim do próprio Dr. Mara,
produto de fino recorte, intelectualmente renascido e recriado no Solar. É uma
catástrofe Dr. Mara, e por isso lhe escrevo, preocupado consigo. Presumo que
ainda não soubesse desta notícia, e dou-lha com pesar. Antes presidiário de uma
casa de banho pública do que estar na sua situação, Dr. Mara.
Bom,
está a acabar a minha bateria, e portanto vou dormir. O chão está coberto de
papel higiénico de folha dupla, e encostarei a cabeça ao sanitário.
Peço
desculpa por esta escrita de retrete, um tanto ou quanto atabalhoada, fruto da
situação embaraçosa em que me encontro. Dentro em breve, já no meu apartamento,
tratarei de lhe enviar impressões sobre as minhas vivências citadinas, assim
como algumas situações que ando a preparar de forma a alterar o curso dos
acontecimentos. Os projectos estão em efervescência, e porei o Dr. Mara a par
de tudo. Até lá, não cometa nenhuma
loucura!
Com
Amizade,
Janeiro
Alves
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