terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Uma Carta de Janeiro Alves em Janeiro de 2016

Caro Doutor Mara,
       
       
     Neste Natal, ao contrário dos restantes, resolvi enviar-lhe os votos de boas festividades desta terra longínqua onde me encontro, e um pedido de ajuda. Não imagina ainda o Doutor Mara o interesse circunstancial desta carta, verdadeiro manifesto da experiência que aqui tenho vivido. Se esta carta manifestasse algum interesse para o progresso da humanidade, o seu conteúdo seria comparado à ida do homem à lua, imaginário inverosímil mas agitador das mais assolapadas paixões. 
        Como sabe, nunca fui dado a Natais. Nunca me invadiu o espírito do bacalhau, e sinto um nervoso crepitante na espinha sempre que oiço “ho-ho-ho”. Como o Doutor Mara deve imaginar, não é que eu tenha nada contra o natal, é que nada tenho a favor.
       Este ano no entanto, encontrei um paradoxo nesta forma de estar. Sendo eu um experimentalista, não podia deixar de viver uma vez que fosse a experiência do natal, de forma a estudar a sua repercussão emotiva no indivíduo. Assim rumei à Lapónia, onde me encontro neste momento. Aluguei um pequeno casebre no meio da Floresta de Rovaniemi e levei comigo mantimentos para alguns dias. Fiquei numa pequena e confortável casa nórdica de madeira, com lareira e sauna exterior. Nos primeiros dias não saí, pois nevava muito. Passei-os a ouvir os Christmas Crooners, a ler alguns livros de natal, e a embrulhar alguns presentes para oferecer a mim próprio. Passados três dias decidi sair. Parara de nevar e aventurei-me pela floresta. Saí de casa às onze da manhã, altura em que nasce o sol, para aproveitar as duas horas de luz até ao por do sol da uma da tarde. No meio da floresta de gelo e luz ténue sem pontos de referência, engendrei uma forma de não me perder, desenrolando desde casa um grande novelo de lã que tinha levado para o efeito. 
       Depois de meia hora de caminho surgiu repentinamente uma matilha de glutões, e comecei a correr para me afastar deles. Não são perigosos para o homem, mas em matilha não arrisquei. Fugi desesperadamente, perdi o novelo e muita neve começou a cair. Depois de muito me afastar, os glutões acabaram por desaparecer no horizonte, e ali me vi, perdido e sem qualquer orientação. Começou então a escurecer e a densificar-se o meu receio de ali acabar os meus dias. Caminhei perdido à procura da casa, e o cenário parecia-me cada vez mais inóspito. Tinha poucas horas de vida. Acabei por cair de cansaço. 
      Acordei numa casa desconhecida. Embrulhado em cobertores, abri os olhos e uma rapariga fixava-me estupefacta. Começou a falar comigo em Finlandês, em tom aflito. Eu disse “I don’t understand Suomi! Do you speak English?”. Ela não falava Inglês, e falava comigo com lágrimas nos olhos. De repente, foi buscar uma fotografia para me mostrar. Era eu, vestido com roupas estranhas. Mas o que fazia a minha fotografia na sua casa? Perante o meu espanto, foi buscar mais algumas, ainda mais estranhas. Eram fotografias onde estávamos os dois, eu e ela, em várias situações do quotidiano.Enquanto eu olhava incrédulo para as fotos, ela abanava-me, chorava, e falava em finlandês num tom desesperado. O auge do irrealismo foi quando observei que numa das fotografias nos beijávamos, eu e aquela heidi das montanhas. Imaginei que deveria estar com sérias lesões cerebrais, ou com delírios febris. 
       Toda esta história culmina com a explicação para o sucedido, não menos insólita. Ouve-se a chave a rodar na porta de madeira velha, e uma voz grossa em finlandês. A rapariga, ainda com lágrimas nos olhos sobressalta-se. Seria obviamente o marido que chegava a casa. Eis que entra um homem igual a mim, fotocópia, cara chapada, sem tirar nem pôr. A rapariga observa-o, volta-se para mim, e para ele, e para mim, e desmaia. Encontrei um sósia de Janeiro Alves, Dr. Mara. E veja só onde o fui encontrar. 
        Acabaram por me salvar a vida, pois a rapariga tinha-me encontrado quase a desfalecer na neve, e trazido para casa pensando ser o seu marido, e que o mesmo estaria com amnésia. Acabámos os três a jantar bifes de rena com vinho quente, a comunicar por gestos e a rir de toda esta situação. Deram-me guarida nessa noite, e no dia seguinte, quando me preparava para zarpar, toda a aldeia me veio ver. Transformei-me na atracção de natal da aldeia, Dr. Mara, numa espécie de freak show escandinavo. Saí em todos os jornais da região, e muitos turistas começaram a aparecer passados alguns dias, engodados pelo fenómeno. Segundo os jornalistas, que falavam inglês, os locais viam a minha aparição como algo sobrenatural, e era intenção do chefe da aldeia erguer uma estátua com duas figuras em bronze: a do sósia Lapão, e a minha ao lado com umas asas de anjo.
Neste momento ainda não consegui sair daqui. Peço-lhe ajuda para que interceda pela minha deportação para Portugal, pois tenho receio que me utilizem para experiências científicas. Imagine a ironia Dr. Mara, um experimentalista alvo de experiências científicas. Peço-lhe que fale para a embaixada de Portugal em Helsínquia com a maior brevidade possível. Se tudo correr bem, será compensado com os melhores filetes de peixe que eu próprio transportarei das águas frias para o seu paladar. 
      Na esperança que esta carta lhe chegue às mãos, desejo-lhe os mais sinceros votos de vigor físico e intelectual para enfrentar de cara erguida os desafios que se levantam imponentes e categóricos neste ano de 2016.

Janeiro Alves, em Rovaniemi - Lapónia

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