Não
devia ter mais de dez anos naquele verão, naquela rua com nome de Ferreiros,
uma rua com título de profissão há muita desaparecida daquele lugar de origem
piscatória. A leitura ameaçava e crescia logo bem cedo, pela manhãzinha com a
ida à Taberna do Senhor Miguel comprar pão e permanecer por lá até cansar as
vistas. O taberneiro era um indivíduo polido, simpático q.b, um nada
provinciano e austero, quase sempre com um semblante carregado e marcas de
religiosidade profunda, dado que se vestia sempre de preto e não permitia
conversas em tom muito alto ou o uso do calão e do vernáculo. Até hoje penso que nunca me advertiu sobre a minha presença em tal estabelecimento comercial pelo facto de conhecer bem os meus pais, pensando talvez que
ter por ali um miúdo de tenra idade a ler o jornal conferia dignidade a quem frequentasse o
estaminé, sobretudo um antro de gente adulta com mais sede do que juízo. No
entanto, eu sabia que estava sob a mira do seu olhar atento e punitivo, ainda que
com a consciência exacta do imediato com que estes seriam avisados de qualquer infracção
matinal que ali tivesse lugar. Sendo assim, a partir de certa altura
tornei-me uma figura de tal modo assídua que alguns clientes se queixavam de já
não ter o jornal diário disponível naquela única mesa em frente ao balcão. Como
pediam as regras da concorrência, eu chegava mais cedo, comprava o
pão, sentava-me e ficava por ali até que não houvesse mais nada para ler. Eu sabia que
notícias novas e fresquinhas só viriam depois da praia, do gelado de gelo, das
corridas de rolamentos e da bicicleta, das idas à videiras e às espigas ou então do competititvo jogo da
carica ou do berlinde. Uma delícia.
Naquelas
manhãs de leitura estival fazia-me, portanto, companhia o "Nia Congros", diminutivo de
Agonia, um pescador rude já com alguma idade, que se caracterizava por ser
muito alto e bastante magro, usando sempre um boné numa cara cheia de rugas tisnada
pelo sol. Saía-se sempre com uma expressão que já trazia engatilhada: “Saia uma
preta fresquinha, senhor Miguel!” Enquanto ele curava as mágoas duma noite de
faina marítima em sobressalto junto da tripulação ou a ausência
de descanso junto da casa das máquinas a cheirar a gasóleo por tudo o que era
sítio, eu ia dando os primeiros passos na política nacional e internacional, descobrindo
os crimes de faca e alguidar, os pequenos furtos e zaragatas, as aquisições do
Varzim e do Sporting, a vida dos actores e das actrizes, a programação
televisiva, a descoberta das das oito diferenças, etc. De vez em quando, o Nia
perguntava-me se o mundo estava igual ao dia de ontem, ao qual eu respondia de
forma perentória – “Ainda agora comecei”. Quem começava e não terminava de
bebericar era este homem que aprendi a ver bêbado sem julgar nem confiar. Em duas
horas era capaz de beber uma grade de cerveja tal era a secura que ostentava.
Encostado ao balcão não era capaz de enunciar muitas frases, balbuciando nomes
de peixes ou ficando a maioria das vezes pelas onomatopeias e por alguns
piropos a quem entrasse um tanto ou nada atarefado.
Passados
tantos anos, penso com redobrada ternura no Nia, um homem entre tantos outros que
recusava o equilíbrio que a planura e a terra firme lhes concedia, optando
assim pela contínua agitação líquida das marés. Aos dez anos, os adultos
pareciam-me todos muito altos e muito proféticos nas suas inclinações e por
esse motivo não me esqueço das suas saídas aflitas e baloiçantes por aquele
corredor da taberna, tal e qual uma traineira à deriva. A luz do sol do meio-dia atirava-o para um
descanso tardio enquanto que para mim era apenas o início. O despertar de um verão longo e comprido. A evocação de uma infância inesquecível e interminável.
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