"Falésias-do-Mar
era uma estância balnear em decadência. De favorita da classe aristocrática do
século passado, transformara-se, agora, num areal envergonhado, onde as famílias
modestas levavam os rebentos nos domingos de descanso. As ruas estreitas tinham
sido concebidas para os peões descansados ou, quando muito para alguma carroça
que fornecesse os moradores da zona. Por isso, as centenas de carros que
sazonalmente, infestavam os caminhos, atropelavam-se, inevitavelmente, num
buzimbué infernal.
Era
assim todos os domingos de estio. As melancias tomavam o lugar dos brioches
enquanto as toalhas de plástico tomavam de assalto o lugar dos linhos antigos.
Em
Setembro, finalmente, o povo resignava-se a voltar à mediocridade da sua vida e
as coisas sossegavam. Os hotéis, quase a fecharem portas, baixavam as suas
tarifas. E os descendentes aristocratas desciam de novo ao mar, embrulhados nas
suas cambraias verdes e nos seus fatos brancos de linho.
Com
a nobreza vinha, como antigamente, uma outra espécie: os artistas. Pintores, à
procura de paisagens desertas; actrizes a descansar de uma temporada exigente;
cantoras a dar ar à voz.
Esta
colecção de gente instalava-se, quase toda, no hotel Almaroz, uma ruína
modernista, a precisar de restauro. A carpete vermelha estava desbotada e os
degraus da escadaria rangiam. Mas as suas janelas continuavam a dar sobre a
praia e as estátuas de um famoso escultor permaneciam ali para deleite dos
frequentadores mais sensíveis. Além disso, os seus preços de final de estação
eram metade dos praticados nos outros (raros) hotéis.
Nesse
ano, com as cantadeiras e os diseurs, chegaram um cineasta envelhecido, a
amante e o filho dela.
Waldemar
Guimarães era um realizador quase esquecido. Por razões que escapam à
inteligência, tinha tido um grande sucesso com os seus filmes, vinte anos
atrás. As criadas e os magalas faziam bicha à porta dos matinés para verem os
seus medíocres devaneios. Outros tempos. Agora, só no Ministério da Propaganda
e Fitas era conhecido. À custa de favores e diplomacia, lá ia fazendo um filme
de dois em dois anos. Coisas inócuas, que nem chegavam às salas de montagem,
quanto mais aos cinemas, mas que lhe iam pagando as mordomias.
Todo
o santo ano lá vinha ele ajaezado de mulher bonita. “Há sempre uma estúpida
para ir na conversa”, dizia ele e com razão, que as coisas são mesmo assim e
quem tem unhas é que toca guitarra.
Gracinha
andava à nora quando o encontrara. Dois dedos de tanga e a citação com meia
dúzia de nomes conhecidos foram suficientes para lhe passar a perna."
in
Materna Doçura, Possidónio Cachapa,
Assírio&Alvim, 1998.
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