Meu
caro amigo,
Gostaria de prefaciar esta carta com o
sincero desejo de a mesma o encontrar de rígida saúde e dotado do poder
criativo e construtivo que lhe permita desenvolver ideias com a novidade da
folhagem fresca coberta de orvalho matinal a agitar-se para fazer notar o seu
vigor num cenário de naturezas mortas.
Não deixa de ser curioso esse conjunto
de avistamentos da minha pessoa por locais diversificados e sem aparente
ligação, pois ainda aqui há uns dias um indivíduo que transporta alguma
reputação no circuito literário de Lisboa jurou a pés juntos que me tinha visto
a passear na Calle de la Noria, em Santa Cruz de Tenerife, estando eu encerrado
na minha vivenda a trabalhar desde o início do verão. Duvido até que ele lá tenha
estado, dada a situação calamitosa das suas finanças depois de mais uma obra
renunciada pela sua editora. De si eu não duvido pois essa é a sua morada
permanente, mas trata-se efectivamente de um equívoco, alguém que se anda a
fazer passar por mim de forma a tirar dividendos pessoais ou simplesmente
instalar a confusão. Peço-lhe que da próxima vez que me vir, chame a polícia de
forma a acabar de vez com esta brincadeira de mau gosto.
Passando a página, manifesto-lhe a minha
mais exaltada e até descontrolada euforia com a aproximação das Conferências da
Fajã, o supra-sumo dos eventos, a canela por cima do grande pastel de nata que
é este mundo moderno. Sei que devido à nossa longínqua amizade, e na qualidade
de organizador principal, o Doutor Mara não se esquecerá de me providenciar o
habitual lugar de destaque no programa do evento, assim como me enviar as
passagens de ida e volta em primeira, e a reserva no hotel do costume com
pensão completa. Para esta próxima edição tenho preparada uma matéria que vai
finalmente lançar os alicerces do “edifício” pós-moderno, unindo todas as
reflexões casuísticas numa única direcção que nos guiará a uma espécie de
Nirvana. Tudo isto, imagine, sem o uso de quaisquer psicotrópicos ou desinibidores
de consciência, pelo que poderemos prescindir do dealer da última edição.
Acabo esta modesta carta com um ar
abatido, cansado e sôfrego, devido ao calor que se faz sentir em Outubro na
capital do império Portuguêz, perfeitamente anormal para a época, adiando
inapelavelmente a minha investida ao guarda fato outonal, onde os meus sapatos
italianos de cetim afivelados se encontram acorrentados à espera de fazer
crepitar folhas caducas como estalidos de sal atirado ao fogo que arde sem se
ver, ser ou não ser, eis a questão, e à parte disso, desejo-lhe um agradável
serão.
Do seu humilde servo,
Janeiro Alves
Janeiro Alves
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