O Segredo das Ilhas de João de Melo |
“A cidade acaba por encantar alguns, e pode mesmo reter o olhar do visitante, a um tempo quotidiana e sumptuária, segundo a expectativa de quem a observa. A memória e a subtileza da história incidem sobre ela com o peso específico de uma realidade açoriana de séculos: entre a modéstia e a riqueza de quem nela herdou bens, títulos e nome de família, sendo a nata e a dinastia da sociedade endinheirada, não raro a mais dominadora. Cidade religiosa e dominical, não há em Ponta Delgada pecado que não possa ser confessado, nem um remorso ou arrependimento que fique por redimir. Pessoalmente, não lhe conheço outra ideologia, nem outra religião. No sítio onde o glorioso e revolucionário poeta e filósofo Antero de Quental se suicidou (saindo dali direito ao Inferno!, segundo o que proclama a doutrina do catolicismo, trataram de erguer uma estátua a uma antiga madre prioresa do Mosteiro da Esperança: não se toleram públicas heresias, e muito menos suicídios de poetas, ali apenas a dois passos do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em pleno Campo de São Francisco! Nunca por nunca uma mão, nem por uma mente mais abençoada, nem um eleito com um poucochinho de poder local, se mostrou sensível mandar erguer ali uma memória, templo do suicídio de um dos mais brilhantes e combativos espíritos do povo lusitano – e, sem dúvida, o mais ilustre de os Açorianos, Antero de Quental.”
João
de Melo, in
“Açores – O Segredo das Ilhas”, Publicações Dom Quixote, edição revista e
acrescentada, 2016.
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