Ou muito me engano, ou
esta carta com vista para dois mil e vinte encontrará um Doutor Mara ainda
inebriado pela quadra natalícia, envergando a sua habitual camisola de lã com
renas e o respectivo gorro vermelho com pompom, e cantando aqui e ali pequenos
trechos do Gingle Bells. Ainda esta
semana obtive a informação de que fulano o viu assim numa casa de pasto insular,
tendo-me contactado logo de seguida. Disse-lhe telefonicamente, e depois de um
longo bocejo, que de nada de preocupante se tratava, e que era apenas uma forma
de o Doutor Mara chamar a atenção.
Registado este pequeno
apontamento, e porque hoje é o último dia do ano, escrevo-lhe de Moimenta da
Beira, localidade pitoresca do interior do país. Foi aqui que muita da história
de Portugal aconteceu, e que o gasóleo
da auto-caravana acabou. Acabei por vendê-la a um estrangeiro, para pagar
dívidas de mercearia. Estou hospedado na estalagem central, preparando-me já
para a grande noite de Reveillon. Para além do habitual caldo verde e das
passas, a estalagem apresenta mais logo um espectáculo de música ao vivo com o
incontornável Tó Organista. Como se deve recordar, conheci o Tó Organista numa
feira de gado há uns anos atrás e ficámos muito amigos. Espero que ele ainda se
lembre de mim, pois é certo que me convidará para subir ao palco e cantar um ou
dois temas. Pelo sim pelo não já comecei a beber Macieira, que como o próprio
nome indica, amacia a voz.
Assim, e apesar de não
me ter convidado, não me vai ser possível passar o Reveillon deste ano consigo,
com muita pena sua. Mas a vida é assim. Como dizem os franceses, “parfois
ensemble pour le Reveillon, parfois non…”. Acabo esta carta com uma boa notícia
para si. Lembra-se daqueles cem euros que lhe emprestei há uns anos atrás para
o Doutor Mara fazer face àquela situação constrangedora que por zelo não
nomearei nesta carta? Para além de não lhe pedir qualquer juro, ainda lhe
reduzo a dívida para oitenta euros. No envelope encontrará um pequeno papel com
o meu nib, e rapidamente o assunto ficará esquecido para sempre.
Despeço-me com um olhar
fascinado e comovido sobre dois mil e vinte e a promessa de voltar em Fevereiro
com todo o fulgor que a química moderna me permitir, desejando ao meu amigo um
novo ano melhor do que o presente, que já não foi mau, mas que poderia ter sido
melhor, como aliás todos os anos acontece, à excepção de alguns onde se
verifica precisamente o contrário.
Cumprimentos reveillonistas,
Janeiro
Alves
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