quinta-feira, 9 de julho de 2020

"Um Passo para Sul" de Judite Canha Fernandes

"-Professora! - gritou uma voz.
Fingiu que não ouvia. O pior que lhe podia acontecer naquele momento era ter de falar com alguém.
-Professora! Professora!!
Continuou.
-Professora Ângela!
A voz dizia-lhe qualquer coisa (talvez das turmas dos anos anteriores?), mas já alguém lhe tocava no ombro. Um rapaz alto e magro, polo vermelho por fora das calças de ganga escura, aí pelos vinte anos, sorria à sua frente com ar nervoso. O volume na garganta aumentou. Enquanto dava aulas a uma turma, lembrava-se dos nomes de toda a gente, sem excepção, porém, depois de registar as últimas notas na pauta, esquecia nomes e sobrenomes para sempre e desejava com profunda intensidade nunca mais encontrar os respectivos seres humanos.
-Como está, professora?-perguntou.
-Tudo bem - respondeu, tentando sorrir. 
-Há uma coisa que tenho de lhe dizer...- balbuciou, torcendo as mãos.
-Sim?
-A senhora foi a melhor professora que alguma vez tive....mudou a minha vida. 
Dito isto, afastou-se rapidamente. 
Ângela suspirou e continuou a andar. Só ao dobrar a curva, a duas ruas da casa, se deu conta do bonito e enorme daquilo. As aulas, as aulas. O seu precioso e surpreendente prazer. Fechava a porta da sala atrás de si e deixava cada turma engoli-la, voraz, o quadro, os olhos, os livros, recentemente também os vídeos, os links, a conversa, as perguntas, tudo encaixava perfeitamente. Parecera ter nascido para dar aulas magníficas, um poder mágico que nunca soube de onde vinha. Nos intervalos perdia-se de aborrecimento. Às vezes tomava café no bar, outras lia qualquer coisa quando ouvia o que diziam à sua volta, em geral conversas que pareciam discursos, coisas do individualismo hedonista contemporâneo de self-change, sublimadas em vaga espiritualidade. Inevitavelmente, surgia uma frase do tipo: «Eu sei o que isso é, passei por isso, mas tive a força de mudar. Mas até para isso tinha alguma paciência, se alguém lhe dirigia a conversa, ficava calada, sorria, às vezes até anuía com ar compreensivo. Só as aulas lhe interessavam.Talvez por isso os dias de ataques como aquele acontecessem mais ao fim de semana. Ao contrário de muita gente, trabalhar era a actividade mais saudável."
Judite Canha Fernandes, in "Um Passo para Sul", Gradiva, Setembro de 2019.

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