Sintra, Abril de 2021
Caro Doutor Mara,
Foi com moderada mas sincera
comoção que recebi a notícia da chegada da sua carta pela minha governanta
Maria da Conceição. Ainda com uma singela lágrima a escorrer-me pelo rosto,
vesti o meu paletó brasileiro e servi-me da melhor reserva de Macieira, ansioso
por notícias suas. Denotei que sucumbiu aos prazeres bucólicos, regredindo às
missivas de cariz poético, algo confusas e pouco esclarecedoras do seu estado
actual. Conheço muita gente ligada ao comércio e indústria, que agora em
cativeiro sofre por se ver impedida de falar da vida alheia. Bastou-me por isso
dois ou três telefonemas para saber ao certo a sua degradante situação. Soube
do seu recente vício em raspadinhas, e como essa circunstância o colocou numa
posição de falência técnica e moral. Presumo
até que os cem euros que lhe emprestei há uns anos para comprar um esquentador
inteligente se tenham transformado em papelitos de raspar. Não admira que não
lhe sobre pilim para a conta da electricidade. O Doutor Mara tem de pedir ajuda
e sair rapidamente dessa situação calamitosa. Infelizmente neste momento não o
posso ajudar, pois já tenho coisas combinadas.
Apesar de toda a situação,
acredito na utilidade desta carta no sentido poder vir a ser inspiradora. Andei efectivamente em Foz Côa a passear.
Porém foi uma visita fugaz. Nessa época estava ali perto, instalado num hotel
termal de grande gabarito nacional, onde fiz tratamentos de rejuvenescimento
com resultados visíveis na pele e no couro cabeludo. Imagine o Doutor Mara, que
tenho andado a viver de rendimentos. A eleição da minha obra “Compêndio Geral
de Plantas Exóticas” como a pior do ano deu-me alguma exposição e nos meses subsequentes
vendi milhares de exemplares. Foi uma espécie de “Engano no banco a seu favor,
receba dois contos”. Comprei a antiga mansão dos Manaias em Sintra, e tratei de
contratar alguns subalternos referenciados pelas melhores casas de tradição
pequeno-burguesa: um motorista, um jardineiro, uma governanta, uma cozinheira,
uma sopeira (adoro uma boa sopa), uma camareira e uma equipa para as limpezas. Tenho
já um quarto reservado para si, Doutor Mara. Caso me queira visitar em breve,
tratarei de providenciar para o nosso jantar os melhores filetes acompanhados
de uma magnífica Raposeira. Os seus aposentos serão preparados com todo o
rigor, e terá como recepção de boas vindas um pequeno cabaz com duas
raspadinhas, uma lata de salsichas do tipo Frankfurt, um kit das unhas e um
saco para vomitar. No dia seguinte, após o pequeno almoço tiraremos a habitual
fotografia de despedida, onde apertaremos a mão enquanto sorrimos
simbolicamente para a objectiva. Por fim, o meu motorista o conduzirá para fora
da propriedade, enquanto eu permaneço estático, acenando com um lenço de
cornucópias à medida que o carro se afasta. Logo após, tudo voltará à
normalidade. Aguardo resposta positiva a este convite, Doutor Mara.
Acabo esta carta com um
trejeito apreensivo no rosto, e uma das sobrancelhas ligeiramente levantada. É
que esse regresso de Miriam ao solar cheira-me a esturro, a mata queimada, a
uma indigestão emocional, enfim, a uma primavera de destroços que alastra no
seu coração. Não se deixe enganar, Doutor Mara! Ela só quer fazer raspadinhas
consigo.
Com sobranceira amizade,
Janeiro Alves
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