Algures a meio do Atlântico, Abril de 2021
Caro Janeiro Alves,
A última notícia que tive sua, fiquei atónito! Uma pessoa credível contou-me que o meu amigo tinha ido passar o ano a Foz Côa numa autocaravana e que aí tinha permanecido. Fiquei, assim, a saber que dormitou junto das gravuras rupestres, que bebeu água pura e fresca, que perambulou e pintou ao pôr do sol, para além de ter passado as noites acompanhado pelas castas Touriga Franca, Tinta Roriz e Touriga Nacional. Deve ter sido um banho de cultura adâmica. Imagino, pois, o meu amigo a respirar todo o esplendor da arte ancestral na tentativa de encontrar inspiração para esse vanguardismo primitivo, que agora nos apresenta em retrospectiva na ilha azul.
Curiosamente, roda neste momento no meu gira-discos, um álbum novo - “Voz de Veludo”, da cantora italiana “Áugure”, a adivinhadora, uma homenagem aos que ditavam presságios. A capa tem um V maiúsculo sobre um desenho de uma escala de índole económica. Enquanto o disco vai tocando, fixo-me no seu tema mais romântico e pungente – Apartar – “Estou afastada e solitária/ Não é desespero ou calvário/ Lento voo, fogo fátuo/ Vou daqui rumo ao espaço/”. Penso, por instantes, em todos os momentos vividos, nas dores consumidas e extintas, agora que vamos lentamente abrindo os olhos, espreitando os corpos que se movimentam em redor, perdidos que estivemos nesse labirinto de memórias e afastamento.
Outra novidade é o facto de Miriam ter voltado a viver na cave do solar, pedindo-me muitas vezes para controlar a minha intensidade vocal evidenciada na excitação matinal, sobretudo desde que me retiraram a saudável esbórnia de outrora. Miriam está linda e contou-me, entretanto, querer voltar a passear comigo junto destes campos ornados de margaridas. É bonito, não é?
Com superlativa estima,
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