quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

"Lobo e Cão": Esta Luz Crepuscular!

         
       Assistir a “Lobo e Cão”, uma longa-metragem focada no que é vital e diverso no humano, assinada pela realizadora Cláudia Varejão, no Cinema Trindade, no Porto, longe das ilhas, pode ser o segredo para um olhar distanciado propiciador de uma reflexão mais livre e descomprometida. 
         Comece-se, pois, pelo título que remete de imediato para um lugar de transição, essa linha ténue que vai da clausura à liberdade, a realidade entre o dia e a noite, do interior ao exterior, a divisão do feminino e masculino, no fundo, esse feixe de luz crepuscular em que tudo se transforma. Daí, ter sido muito feliz a escolha deste título na fixação efémera dessa passagem, dado que estamos na presença de três amigos adolescentes em mudança.  
      “Lobo e Cão” é, sem dúvida, um filme delicado, que não tem pretensões em dividir as águas, mas sim aproximar e dialogar com as diferenças, sem ser invasivo. A película aborda a comunidade queer de São Miguel, no que isso possa ter de "particular" ou “alienígena”, sobretudo para quem se limita a observar do exterior. No entanto, o seu olhar é feito a partir de dentro e com grande respeito pelas pessoas. É que Cláudia Varejão gosta de filmar, com vagar e proximidade, a assunção de personagens comprometidas com o seu corpo e os seus sentimentos, associados ao lugar de origem, refletidos na sua identidade. Por esse motivo, a realizadora filmou "Ana", Ana Cabral, com muito cuidado e sensibilidade, sendo que esta tem aqui um papel de enorme expressividade física e contenção sentimental. A “Paulina”, Marlene Cordeiro, a mãe de "Ana", transporta consigo o passado e o medo de ter falhado nos cuidados maternos, realçando um registo facial sofrido, de resistência e firmeza desmedida. Depois, há também Ruben Pimentel (Luís) e Cristiana Branquinho (Cloé) que dão oportunidades de sobra à realizadora portuense de tocar em emoções reprimidas, soltar afetos contidos, expressar perdas e outros tantos sonhos por cumprir. A imagem do filme absorve-os de tal modo que estes parecem dominar o mundo da representação há muito tempo, tal é o desembaraço perante as câmaras. No entanto, após o visionamento do filme, o embaraço é dos que continuarão a recusar a diferença dos que vivem e sofrem em silêncio com os seus desejos e anseios por realizar.
             Desta feita, esta primeira longa metragem de Cláudia Varejão, com a duração de 110 minutos, é um rico presente cinematográfico que nos devolve a ilha sob a forma de mosaico humano plural - para além da bonita fotografia - sendo esta filmada maioritariamente na freguesia de Rabo de Peixe, em São Miguel.
           Por último, sublinhe-se que “Lobo e Cão” já ganhou o prémio principal da secção Giornate degli Autori do Festival de Veneza e que contém uma banda sonora capaz de abarcar os mais diferentes registos sonoros: Xinobi, que traz três temas imponentes “Toute une Premier Fois” “Searching For” “Cruise Fort V2”, os Vive La Fête, com um dos temas musicais evocativos da narrativa - “Porque te Vas?”- num tema antigo de Jeanette, a britânica que adorava a cultura espanhola, o “Concerto em D Minor, BWV 974 II Adagio” de Johann Sebastian Bach, interpretado por Olga Schoeps, ou ainda o “Das Buch der Klänge”, de Hans Otte, tema mais que hipnotizante tocado aqui pela pianista Joana Gama.

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