Assistir a “Lobo e Cão”, uma longa-metragem focada no que é vital e diverso no humano, assinada pela realizadora Cláudia Varejão, no Cinema Trindade, no Porto, longe das ilhas, pode ser o segredo para um olhar distanciado propiciador de uma reflexão mais livre e descomprometida.
Comece-se, pois, pelo título que remete de imediato para um lugar de transição, essa linha ténue que vai da clausura à liberdade, a realidade entre o dia e a noite, do interior ao exterior, a divisão do feminino e masculino, no fundo, esse feixe de luz crepuscular em que tudo se transforma. Daí, ter sido muito feliz a escolha deste título na fixação efémera dessa passagem, dado que estamos na presença de três amigos adolescentes em mudança.
“Lobo
e Cão” é, sem dúvida, um filme delicado, que não tem pretensões em dividir as
águas, mas sim aproximar e dialogar com as diferenças, sem ser invasivo. A
película aborda a comunidade queer de São Miguel, no que isso possa ter
de "particular" ou “alienígena”, sobretudo para quem se limita a
observar do exterior. No entanto, o seu olhar é feito a partir de dentro e com
grande respeito pelas pessoas. É que Cláudia Varejão gosta de filmar, com vagar
e proximidade, a assunção de personagens comprometidas com o seu corpo e os
seus sentimentos, associados ao lugar de origem, refletidos na sua identidade.
Por esse motivo, a realizadora filmou "Ana", Ana Cabral, com muito
cuidado e sensibilidade, sendo que esta tem aqui um papel de enorme
expressividade física e contenção sentimental. A “Paulina”, Marlene Cordeiro, a
mãe de "Ana", transporta consigo o passado e o medo de ter falhado
nos cuidados maternos, realçando um registo facial sofrido, de resistência e
firmeza desmedida. Depois, há também Ruben Pimentel (Luís) e Cristiana
Branquinho (Cloé) que dão oportunidades de sobra à realizadora portuense de
tocar em emoções reprimidas, soltar afetos contidos, expressar perdas e outros
tantos sonhos por cumprir. A imagem do filme absorve-os de tal modo que estes
parecem dominar o mundo da representação há muito tempo, tal é o desembaraço
perante as câmaras. No entanto, após o visionamento do filme, o embaraço é dos
que continuarão a recusar a diferença dos que vivem e sofrem em silêncio com os
seus desejos e anseios por realizar.
Desta feita, esta primeira longa
metragem de Cláudia Varejão, com a duração de 110 minutos, é um rico presente
cinematográfico que nos devolve a ilha sob a forma de mosaico humano plural -
para além da bonita fotografia - sendo esta filmada maioritariamente na
freguesia de Rabo de Peixe, em São Miguel.
Por último, sublinhe-se que “Lobo e
Cão” já ganhou o prémio principal da secção Giornate degli Autori do Festival
de Veneza e que contém uma banda sonora capaz de abarcar os mais diferentes
registos sonoros: Xinobi, que traz três temas imponentes “Toute une Premier
Fois” “Searching For” “Cruise Fort V2”, os Vive La Fête, com um dos temas
musicais evocativos da narrativa - “Porque te Vas?”- num tema antigo de
Jeanette, a britânica que adorava a cultura espanhola, o “Concerto em D Minor,
BWV 974 II Adagio” de Johann Sebastian Bach, interpretado por Olga Schoeps, ou
ainda o “Das Buch der Klänge”, de Hans Otte, tema mais que hipnotizante tocado
aqui pela pianista Joana Gama.
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