terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Nefelococígia


Entra nuvens e aves terrestres
o horizonte marítimo ilimitado
clássico ensejo desabrido
vogam corações leitores
a noite não finda é um recomeço
aguardam-se navios iluminados
náufragos de interminável apego
versos afogados em líquidos destinos
descanso etéreo do nocturno aviso
fim de farândola em leito descoberto

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Caligrafia

Numa manhã de Fevereiro
Apaixonei-me pela tua caligrafia
Daí em diante fiquei a saber
Este é o mês em que se sofre menos


                     

Vaga

Fotografia de Eduardo Brito


Por vontade das correntes
Acato as tuas inquietações
Não aceitando que me troques
Pelo redemoínho das areias

Este é um desejo em escalada
Rasgando a onda escalando a vaga
À força de tudo querer
O espelho de um corpo em toda a água

Dentro da In Folio

        Uma livraria que não é um negócio, um lugar que mais parece uma loja de guloseimas e uma paixão pelos livros inabalável. Aqui há silêncio, aqui há paz de espírito para absorver o ritmo da leitura. Há livros que ganham novas propriedades com pessoas que gostam de trabalhar o seu interior, a sua apresentação, a forma como se apresentam aos leitores. Talvez seja esse o futuro, livros como objectos imaculados, talvez. É maravilhoso saber que existe um lugar assim a meio do oceano atlântico.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sossega, Puto, sossega!

"O Miúdo e a Bicicleta", filme Jean Pierre e Luc Dardenne

Há dias ficamos a saber que Cyril (Thomas Doret), o actor do filme “O Miúdo e a Bicicleta”, andou com o seu frenesim e agitação cicloturística pelo canal 2 da RTP (em qual é que poderia ser?). Andou? Aos doze anos não se anda, corre-se, neste caso pedala-se e muito, vai-se até ao fim do mundo, inquietamo-nos com os pés, desinstala-se o medo, atiram-se pedras à boca e com o coração nas mãos e com a língua de fora, ninguém mais nos segura até sabermos as razões, ou mesmo sem elas, somente para que nos digam o porquê de nos terem abandonado. Porquê? Digam, por favor. Podiam ao menos dar uma razão, uma explicação que seja, façam alguma coisa para travar esta aflição. Estranhos, estes adultos. O que é que será que é preciso? E, logo numa casa de acolhimento, porquê? E por isso vamos com ele até ao fim, atentos ao que acontece, à espera que alguém desate o nó. E…lá está a câmara frenética dos irmãos Dardenne sempre atrás dele e da sua camisa vermelha (porque terá sido o vermelho a cor escolhida?). E lá vai ele, sempre ele, a pedalar, como um pequeno cavalo ofegante na esperança de desatar aquele nó, ao alcance do pai. E o certo é que não o desata. É que a explicação não vem, a resposta não chega, mas há, entretanto, a almofada que Samantha (Cécile De France) lhe estende à espera que corra tudo bem… apenas por enquanto, o valor do sorriso e o colo de quem se coloca na pele do outro, e bem que podia ser qualquer um de nós a tentar compreender, a exortar uma clarificação, a aspirar por uma justificação. Sorte, portanto, haver esta Samantha, cabeleireira de profissão, com um sorriso doce e maternal, disposta a passar com ele os fins-de-semana, primeiro, e depois a travar o desassossego de Cyril quando a corda rebenta e a estação de serviço quase explode…de raiva. É ela quem consegue apaziguar tanta dor e revolta. Cyril vai ter que aprender a viver com aquela nódoa no coração. É assim quando somos abandonados, à força das circunstâncias ou intencionalmente. Não é fácil, mas vale a pena tentar. E por isso é que nós agradecemos aquele passeio de bicicleta – belíssimo momento de cinema! - com direito a lanche do “casal” bem já perto do final, pois, como nos diz a Hanna Arendt, “nada nos introduz mais no universo vivo do que o amor”.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mar

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 27 de janeiro de 2013

Marafilia


DM: Desculpe-nos a interrogação, mas passamos junto do seu gabinete e tinha lá escrito: “Aqui trabalha e vive Doutor Mara…fui para junto do mar!”. Passou-se alguma coisa de grave, algum imprevisto, alguma situação menos clara, caríssimo Doutor Mara?
Doutor Mara: Não creio. No entanto, aviso que não sou pessoa de deixar bilhetes falsos ou pregar falsas partidas, sem razão aparente. Vim para junto do mar, é um facto, como podem comprovar. Há três dias que não paro de dar mergulhos no mar. Estamos no Inverno é certo, mas se é para voltar ao mar como já ouvi pela boca das mais altas instâncias então que voltemos em força. Sem medos nem quebrantos.

DM: Neste seu acto Doutor Mara perscrutamos muito mais do que mergulhos, parecem-nos um gesto de protesto e de afirmação de uma identidade que pode ser perdida?
Doutor Mara: Estamos neste momento numa encruzilhada. É um pouco como aqueles momentos da vida em que decidimos se havemos de partir ou ficar sem deixar nada para trás. Às vezes também tenho uma visão idílica dos antigos habitantes desta terra e então imagino as ruas das cidades cheias de gente e orgulhosos da sua cultura do mar e do campo, encho-me de vaidade das profissões que valorizam as mãos, ouço-os cantar as canções antigas de trabalho e a vestir fatos lindos ao domingo, mas depois não tenho em mente de alguma vez termos sido felizes e pobres ao mesmo tempo. Meus amigos, uma redundante certeza eu já tenho da minha parte: eu nunca abandonei o mar, mas já deixei bolo-rei no prato.

DM: Inclusive soubemos de fonte segura que já mergulhou com tubarões recentemente, é verdade?
Doutor Mara: Não tenho feito outra coisa nesta vida, sabem disso. Gosto de os ver passar, analisar o seu comportamento e perceber que nos temos que afastar se não quisermos que uma parte de nós sucumba. É muito simpático analisar a forma como os tubarões pequenos gostam de agradar aos tubarões de grande porte, manifestando a sua dedicação em manobras e outras diversões, sendo muitos destes de uma lealdade que faz impressão. Sabemos que a sua condição de predador deixa pouca margem de manobra para afastar-se da costa mas seria bom tom que em conjunto pudéssemos encontrar reservas naturais só para este tipo de animais.  

DM: Doutor Mara, vemos alguma nostalgia ou saudade nas suas palavras, coisa que não é muito comum, não é verdade?
DM: Os últimos tempos têm sido profícuos quanto à discussão daquilo que Portugal e os portugueses poderiam ou não fazer. É bom termos ganho consciência de que o país é a soma de todos os seres individuais. A certeza de que seremos muito mais fortes juntos. As democracias são por vezes injustas com as minorias, quando as maiorias são de facto medíocres impedem que essa minoria possa ter um país melhor, de tentar alcançar um bem-estar colectivo. É difícil combater este dom sebastianismo de séculos, que se manifesta nesta aceitação de figuras providenciais e salvíficas. Não tarda nada estão a meter-nos a mão no bolso. Costuma-se dizer que temos aquilo que merecemos.

DM: O diagnóstico já foi feito há muito tempo e só nos impede de juntar forças e agir. Doutor Mara, Estaremos já num beco sem saída?
Doutor Mara: Sim, é verdade, foi uma espécie de aragem que que entrou e que parece demorar a sair, acontece sempre isto com gente com mais olhos do que bucho e uma necessidade maior de parecer do que ser naquilo que seria esperado. Não sabemos o que virá a seguir mas certamente já não voltaremos ao ponto de partida.

DM: Talvez agora nos possa responder ou explicar por que é que quando lhe perguntamos na entrada do novo ano o que desejaria para este ano mergulhou numa resposta inusitada, respondendo: “um barco e uma flor”. Alguma resposta na manga?
Doutor Mara: Sabem, por diversas vezes quis abandonar este país, por desalento, por ver que as coisas não funcionam como deviam funcionar, até por falta de oportunidades, ou por sonhos de outra vida imaginados noutros lugares, quase sempre associados a “paraísos” de silêncio e algum anonimato. O que é verdade é que, muito embora tenha vivido várias vezes no estrangeiro, nunca abandonei definitivamente este país. Nunca. A pergunta será: é o mar ou é este país que me custa abandonar?

DM: E se for o mar?
Doutor Mara: Se for o mar precisarei de um barco…posso sempre partir e regressar. Há sempre rota de partida e de regresso.  

DM: E a flor, Doutor Mara, diga-nos, o que é que isso significa?
Doutor Mara: A flor significa a esperança, e esperança no país, obviamente. A esperança de que um país é um lugar para se amar e cuidar…por isso precisamos que a flor germine. Para isso é necessário terra, água, semente e tempo. Quem está disposto a abrir o primeiro sulco no chão?
DM: Estamos em suspenso, Doutor Mara, estamos em suspenso. Muito gostaríamos de ter uma resposta para lhe dar.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Ginecomagia

DM: Era um domingo como outro qualquer, sem absolutamente nada para contar, caso não tivéssemos sido surpreendidos por uma visão implacável: a presença do Doutor Mara num banco de jardim rodeado de material literário como é seu hábito, ainda que com algumas surpresas que, imediatamente, quisemos indagar.

DM: Doutor Mara, ao fim de algum tempo, afinal do que tem saudades?
Doutor Mara: Dos meus anos vividos em Estocolmo, na minha fria e amada Suécia. O anonimato na rua sabia-me bem. E, como era bom ir beber uma meia de leite ao café String, fica em Söderlmalm, sentar-me onde se sentava o Jan Johansson, imaginá-lo ali com as suas pautas retiradas da sua pasta preta com um desenho de uma clave de sol e ficar a ver os flocos de neve cair. Estava-se melhor no interior daquele café do que em algumas casas portuguesas. No Inverno, claro.

DM: Já viveu, portanto, em outros países?
DM: Sim, garantidamente, enquanto experiências existenciais de longo alcance, foram pelo menos quatro. O resto foram passagens e paisagens de circunstâncias. Sempre por razões afectivas e românticas, que talvez faça, um dia, o trabalho de descortinar tamanhos périplos efectuados, o que não é fácil.

DM: Doutor Mara, temos hoje para si uma pergunta complicada, pois corre nos tugúrios menos asseados da nossa cidade, rumores de uma hipotética homossexualidade da sua parte.
Doutor Mara: Nada contra, aceito os rumores e, obviamente, a homossexualidade. Houve tempos que, num programa de rádio denominado "Campos de Naftalina", li de forma caótica e irónica um conto intitulado de "O Nariz", pertencente ao escritor russo Nicolas Gógol, um conto extraordinário sobre alguém que acorda sem nariz. Felizmente para nós, o nariz é um produto tipicamente português e que bem poderia ajudar a estabilizar a nossa balança comercial, caso decidíssemos exportar o tamanho do nossos narizes de uma só vez para quem estivesse interessado nas suas respectivas compras e aquisições. O slogan podia ser: "Vende-se o meu nariz, vai do Pessegueiro até Paris". E, nestes dias em que vejo que o nariz tem inoportunas funções,  lembro-me sempre do Alexandre O´Neill, quando este um dia ironizou: "Não metas o nariz na vida dos outros, pois podes lá ficar". E, porventura, é verdade.

DM: Doutor Mara, mas…há alguma ponta de verdade no que se ventila por aí?
Doutor Mara: A cada um a sua ventilação, já dizia o filósofo das barbas brancas que os nossos irmãos espanhóis “espanholaram” com o nome de Carlos Marx. Seria plausível ou com uma boa ponta de verdade caso eu tivesse alguma relação com alguém do sexo masculino, o que não se verifica. De qualquer modo, não vejo que isso ainda possa ser apelidado de rumor. A sexualidade de cada um devia pertencer única e exclusivamente a cada um.

DM: O que seria de todo verdade caso o Doutor Mara fosse apenas um cidadão comum, o que não nos parece, dado o seu estatuto de personalidade pública, não é verdade?
Doutor Mara: Como eu vos compreendo, caros amigos. Estes meus velhos hábitos de anacoreta deram sempre origem a esse tipo de efabulações. Depois, creio que começo lentamente a tornar-me politicamente incómodo com os meus estudos e intervenções de longo alcance sociológico. Julgo ter uma reputação imaculada, mas nunca se sabe o que as más línguas serão capazes de inventar. A acreditar naquela máxima de que quando um escândalo desponta e se espalha há sempre um fundo de verdade, qualquer dia ainda me acusam do síndrome de sotaque estrangeiro. Não é assim?

DM: Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista Playboy. Sem querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?
Doutor Mara: Mas isso interessa actualmente para alguma coisa?

DM: Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?
Doutor Mara: Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga-se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus amigos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise, nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. A sociedade em que vivemos é profundamente erotizada e o desejo mecanizado. Posso afirmar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.

DM: Agora que esperamos a Primavera, perdoe-nos, no entanto, o atrevimento. Como era o Doutor Mara nas Primaveras da sua juventude. Sentia, à semelhança dos seus contemporâneos, o seu corpo vibrar em comunhão com a natureza, em harmonia total, o tal desabrochar  dos tecidos?
Doutor Mara: Evidentemente que sim. Recordo-me de no tempo do liceu ter desenvolvido uma paixão platónica pela Professora Emília, que leccionava a disciplina de História. Lembro-me lhe ter dito no dia inicial da estação primaveril, semelhante introdução camoniana: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho logo mais que desejar/ Pois em mim tenho a parte desejada.” Ela avisou o Director de Turma que eu não estava bem. Passei o verão a auxiliar um vizinho que era mecânico de barcos como castigo. Aprendi muito nesses dias de óleo, chave 24 e motores de quatro tempos. Acontece aos melhores.

DM: Soubemos que tem uma enorme admiração pelo universo feminino e que um dos seus sonhos era ser um insecto e poder um dia entrar numa casa de banho feminina ou num táxi só com mulheres, inclusive a taxista.
Doutor Mara: Não chegaria a tanto, não exageremos. É um facto que tenho muita, para não dizer uma total curiosidade sobre o universo feminino em local tão íntimo. Há qualquer coisa de erótico nessas reuniões alargadas. Desconfia-se que é uma conspiração de Eros e que faz com que todas elas se sintam, subitamente, objectos do desejo masculino. Aqueles pequenos gritos de prazer – se forem realmente  sinceros - de várias mulheres em locais desprovidos de homens são profundamente atraentes. Lembro-me de um realizador de cinema brasileiro, citando outro realizador, ter dito que os homens realizam acções em função de três objectivos: as palmas do público, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres. Nem sempre por esta ordem de ideias, o que torna o homem muito objectivo na sua sedução. Não concordam?

DM: É possível, Doutor Mara, é possível.Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?
Doutor Mara: Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampamento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, o que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Channel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Virei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

DM: Doutor Mara, sinceramente, acredita na fidelidade?
Doutor Mara: Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha de infância passada junto do mar, recém-regressado da Islândia, onde fez o doutoramento em Espeleologia e Minerologia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?
DM: Claro que sim, Doutor Mara. Foi mais uma vez um enorme prazer falar consigo. 

PANAZOREAN na Ilha Terceira

“Die Fremde” de Feo Aladag.

           Duas noites de cinema dedicado ao diálogo intercultural no Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo numa extensão do Festival Panazorean, evento com sede em São Miguel, e que se realizou durante mês de Abril do ano passado em Ponta Delgada. Belíssima e arrojada iniciativa pautada pela exibição na terça-feira, dia 22, pelos filmes “50 Pesos Argentinos”, “Down in Egyptland” de Lukas Zund e “Mazagão, a Água que Volta” de Ricardo Leite e, na noite de quarta-feira, dia 23, pela exibição dos filmes “PDL- LIS" de Diogo Lima e “Die Fremde” de Feo Aladag.
      As sessões sempre bem compostas de público e com os filmes a surpreenderem pela positiva.“50 Pesos Argentinos”, prémio do público, melhor filme regional, é um interessante exercício sobre os açorianos que partiram em busca do “el dorado” em terras argentinas e sobre aqueles que no arquipélago permaneceram à míngua das suas expectativas e anseios por não terem partido. “Down in Egyptland, prémio RTP2/Onda Curta, é um objecto cinematográfico bem conduzido, com uma excelente fotografia e uma ainda melhor banda sonora, precisava somente de melhores soluções narrativas. Quanto “Mazagão, a Água que Volta” estamos perante um trabalho arrojado, valoroso enquanto documento mas algo extenso e a necessitar rever alguma consistência nos conteúdos apresentados. Na segunda noite, a atenção recaiu no filme “Die Fremde”, prémio melhor filme internacional, e que é uma auspiciosa e entusiasmante primeira obra de Feo Aladag. O filme gira em volta de Umay, uma jovem turco-alemã que fugindo de um casamento infeliz em Instambul, parte para Berlim onde os seus pais residem, procurando aí a sua emancipação. Tudo seria perfeito caso não existisse esse código de honra tradicional que faz com que “Umay” seja também ela uma estrangeira para os valores da sua própria família. O filme é magistralmente acompanhado pelo piano de Max Richter e as composições de Stéphane Moucha. Os últimos cinco minutos do filme são deveras comoventes e reveladores do melhor que ainda está para vir desta cineasta austríaca. 
            Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi  oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Just one more gig!


     Desconfia-se que o conhecimento da existência dos Durutti Column possa ter sido adquirido após uma leitura do Blitz nos idos anos oitenta. Porventura, no meio da enxurrada dos Joy Divison, The Gist, Young Marble Giants, The Clash, U2 ou os The Smiths e, ainda de uma catrefada de bandas ouvidas na altura até à  exaustão, julgo ter chegado à guitarra maravilhosa e ondulante da banda do fantástico magriço Vini Reilly e aos seus Durrutti Column.  
    Chegam, entretanto, notícias que o próprio Vini Reilly passa no actual momento uma situação de fragilidade física – três derrames cerebrais – que motivaram uma enorme fragilidade financeira, acrescida à inoperância do sistema de segurança social inglês que demorou dezoito meses a prestar apoio à sua doença. Um periodo de tempo quase idêntico à aparição dos discos nos escaparates que se faziam por esse mundo fora nos idos anos oitenta. O que vale é que uma onda de solidariedade ajudou o músico a suportar as despesas, sendo que este já veio agradecer e propor-se a retribuir a ajuda com material sonoro da sua autoria. Humilde e honesto, como o dedilhar da sua guitarra.
Capa do disco "Amigos em Portugal"
    Sei que não abona nada a meu favor nunca ter assistido a nenhum concerto dos Joy Divison, U2, Echo and Bunnymen, ou osThe Smiths, bandas que circulavam abundantemente em cassetes pelos diferentes aparelhos sonoros anos a fio, mas a verdade é que raramente falhei aos concertos dos Durruti Collumn nas suas aparições em Portugal. E, como é viva e intensa, a memória vivida desses concertos. No final, ficava à espera pela sua saída para estender-lhe os bilhetes para ele autografar bem como cheguei a dar-lhe as páginas do livro “Escrítica Pop”, onde o Miguel Esteves Cardoso assinava as crónicas de puro deleite e encantamento sobre o grupo de Manchester. Ele sempre com a maior das delicadezas e bonomia agradecia, com humildade despedia-se, prometendo voltar. Lembro-me da imagem de Vini Reilly ser sempre de uma enorme fragilidade física e delicadeza, sobretudo na forma como dedilhava a sua guitarra e se posicionava no palco. A suportá-lo naquele cenário via sempre um homem bojudo e sorridente, como era o caso do baterista Bruce Mitchel. No final de um concerto subi o palco e, enquanto ele recolhia os cabos das suas guitarras, disse-lhe que o Robert Fripp tinha afirmado ser ele o melhor guitarrista do mundo. Ele, na plenitude da sua humildade, disse-me: “Fripp is crazy!”. Outra vez, num festival em Torre de Moncorvo, o Carviçais Rock, desejei-lhe boa sorte para o concerto, com o que ele ripostou com um sorridente;“It´s jus one gig”. A economia de palavras era uma particularidade sua, bastava para isso assistir aos seus temas cantados na sua voz comedida e frágil, ao longo de mais de trinta discos editados. Num dos seus últimos concertos no Coliseu do Porto, a que curiosamente não pude assistir, pedi para que lhe entregassem uma colecção de postais bem como o nosso livro - “Construções na Areia”. Não sei se alguém fez chegar esse material em jeito de presente e que pretendia ser um agradecimento pelas três décadas de músicas que nos ofereceu e que nos tem acompanhado. E talvez, por instantes, só me  apetece gritar: “It´s just one more gig!”

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Homem dos Cabelos Compridos

Ilustração de Pedro Valim

Quem é aquele velho ali sentado com cabelos compridos e roupa que mais parecem trapos? Interrogou-se a minha colega de profissão que adora passar horas que junto do computador a elaborar grelhas e gráficos. Uma profissional das estatísticas, sem qualquer dúvida, acredito. Comecei entretanto a discorrer sobre o homem com respeito e admiração o que lhe parecia estranho. Disse-lhe que o homem era uma mente livre e profundo de liberdade, apesar do seu ar pobre, solitário e de anacoreta. Contei-lhe que homens daqueles invulgarmente encontram cabimento nestas sociedades da produção e do consumo. A minha colega ouvia e ria como uma criança para toda a esplanada ouvir, exclamando que tudo o que eu dizia não passava de tontices da cartilha esquerdista aprendida na adolescência, que eu era profundamente romântico na minha visão de homens daquela estirpe. Acrescentei que o homem dos cabelos compridos era um escritor de qual eu tinha lido alguns poemas, um verdadeiro outsider, um daqueles puros que amavam a vida ao ar livre, gostava de ir aos estádio ver jogos de futebol e que não podia deixar de viver junto dos outros através de conversas que vai tendo com os vizinhos, com a leitura de muitos livros e de jornais. E, mesmo assim, ela continuava impassível, metida consigo e disposta a passar para mim o seu ar blasé, mantendo o ar jocoso, interrogativo sobre como eu era capaz de encontrar referência e admiração em personalidades assim. Assim como? Referi mais uma vez que aquele homem era para mim um Fernando Pessoa do nosso tempo, desconfiando apenas que ele fosse casto, dado que o tinha avistado com duas mulheres feitas, ao qual nunca saberei se seriam mãe e filha, ainda que estas se tratassem de forma terna e afectuosa. Não sei. Pagámos a conta e cada um foi à sua vida.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Memóriacracia


DM: Foi numa manhã solarenga e de céu cor azul anilina que, ao contrário do passeio prometido de sábado, decidimos rumar à biblioteca pública. Foi lá, no entanto, que encontramos o Doutor Mara, sentado numa cadeira oitocentista e debruçado sobre uma mesa de madeira, de árvore criptoméria, por sinal, com folhas brancas espalhadas por tudo o que era sítio. Espantoso, Doutor Mara, é, sem qualquer dúvida, a primeira vez que o vimos por cá, não é assim?
Doutor Mara: Bom, vocês sabem que eu sou um frequentador diário de bibliotecas públicas. Não consigo perceber essa admiração, sinceramente. No entanto, é verdade, meus caros amigos, concedo-vos algum crédito nessa informação. Nos últimos cinco anos, devo ter permanecido nesta sala uma mão cheia de vezes. O gabinete que ostento e o volume de trabalho que possuo não me permitem ficar por aqui mais do que os habituais cinco minutos diários. Porque hoje é sábado, posso dar-me a este luxo contemporâneo, evidentemente.

DM: É uma pena, Doutor Mara, não podermos contar com a sua presença muitas mais vezes…
Doutor Mara: É um facto, com muita tristeza e pena minha. Durante os últimos anos requisitei e devolvi centenas, para não dizer milhares de livros. E assim saudava parcimoniosamente as senhoras bibliotecárias, tropeçava no degrau da entrada e punha-me na alheta. Às vezes, é certo, lá ia dando uma escapadela para ler o jornal da minha terra, uma piscadela aos diários desportivos ou então fui espreitando as capas das revistas cor-de-rosa. Por vezes, fiz também uma pequena pausa para ler o meu horóscopo. Quem sabe um dia destes ainda acertam!?!

DM: Desconfia-se que deve ter muitas histórias da sua juventude em bibliotecas. Umas mais divertidas que outras, certamente, não é verdade?
Doutor Mara: Sem dúvida, meus caros. Comecei por vir para este depósito de narrativas muito antes das novas tecnologias terem invadido estes espaços de leitura funda. Lembro-me de um período da vida – muito jovem, claro! - em que tinha ouvido falar nos textos visionários e fecundantes de Plutarco. E, estava, por isso, inquieto por lê-lo. Foi quando decidi entrar na biblioteca nacional e pedi para consultar este literato romano do período clássico. Levaram-me para uma sala repleta de algum livros cheios de pó e de caruncho. Foi o tempo suficiente para que duas pessoas me trouxessem um livro escrito em latim, tal era o peso e o tamanho do livro. Recordo-me que ali fiquei a olhar para o livro umas boas duas horas sem saber o que fazer. Como não percebia nada do que lá estava escrito, agradeci a experiência de carácter místico-espiritual e vim-me embora. Outra vez, no interior do país, em que uma biblioteca local abria aos sábados de tarde, fui surpreendido com um estalo de uma criança de oito anos. Esta disse-me, estarrecida, que eu não podia ler o livro que ela tinha lido na semana anterior. Um absurdo, evidentemente. Chamei o funcionário e pedi o livro de reclamações. Recentemente, há cerca de menos de duas horas atrás, fomos surpreendidos com o grito de um bibliotecário que obrigou o leitor do livro "Peito Grande, Ancas Largas", de Mo Yan (o mais recente Nobel da Literatura) a interromper a sua leitura para este retirar a bicicleta que estava encostada à parede do edifício de utilidade pública.

DM: Soubemos que obteve um convite dos “amigos do livro e da biblioteca” para lançar um livro de memórias. Não sabíamos é que irá fazê-lo muito em breve. Confirma-se assim a brevidade e urgência deste seu acto?
Doutor Mara: Tenho um enorme e imaculado respeito por estes lugares de silêncio e respeito pelos livros, como poderão imaginar. Na realidade, não pude recusar a gentileza do convite efectuado bem como meu passado civil ligado à bibliofilia. Por outro lado, tenho uma dívida enorme para com as bibliotecas que nem o dinheiro do FMI conseguiria pagar. No entanto, quero-vos dizer que não será bem um livro de memórias mas sim um acto provocatório com que brindarei os amigos do livro e da biblioteca. Esta ideia surgiu-me há dias em conversa com um amigo músico, excelente músico, aliás, que nos abandonou para ir viver para o Lago di Como, em Itália. Se quiserem, conto-vos de memória essa rica história, caso queiram ouvir.

DM: Conte-nos, Doutor Mara, estamos ansiosos por saber tudo sobre este livro seu novo livro…
Doutor Mara: Então foi assim… há dois anos um grupo de estudantes questionou esse meu amigo músico como tinha sido a sua adolescência musical, ao que este respondeu que tinha sido um pouco alternativa pois ouvia muita música clássica e, que, então, tinha perdido o comboio do pop, do rock e do punk que se ouvia na altura, apanhando os restos do chão, alguns anos mais tarde. A mim sucedeu-me exactamente o contrário, pois só agora redescubro o prazer e a intensidade da música clássica, relegando para segundo plano o pop, o rock e até mesmo o punk. No entanto, há alguns dias atrás, num barracão de madeira, descobri através de um grupo punk uma enorme empatia não só pela música que estes tocavam, como adquiri uma sensibilidade especial com a espécie animal, neste caso os toiros, numa das suas canções. A partir daquele momento, nunca mais consegui assistir a touradas ou às célebres marradas que se podem comprar ou  assistir em profusão pelos diferentes estabelecimentos comerciais. Quando vejo a dor e a aflição de quem apanha com uma marrada de um toiro bravo à solta, faço o exercício de chamar à memória a história da “Branca de Neve e os sete Anões”. É uma forma de eu me reconciliar com o presente e travar o meu passado activista de político e militante. Foi assim que cheguei ao livro que pretendo apresentar...

DM: Daí alguém ter dito à “boca pequena” que este seu livro se intitularia “Branca de Neve”, o que seria um plágio do título do livro de Robert Walser? 
Doutor Mara: Pois, deve ter sido o rumor que correu pelos estaminés etílicos da cidade. No entanto, para vossa informação, já existia também o filme português do João César Monteiro com esse nome. Um filme lunar, diga-se. Ouvi, enquanto bom ouvinte, umas dez vezes esse maravilhoso filme radiofónico. Por outro lado, a editora corria o risco dos adultos comprarem o livro para oferecer às crianças no próximo Natal, o que não seria mau de todo. Para a editora, claro.

DM: Sendo assim, será que agora já nos pode revelar o título, ou ainda está no segredo dos deuses? 
Doutor Mara: Eu preferia, sinceramente, que tivessem sido as deusas a guardar segredo, dada a pureza deste meu acto. É um título correspondente ao formato e páginas a apresentar: “Branco e Tão Leve”. É um livro sob o signo do branco, com o título gravado em iões de prata para que tenha algum valor comercial adquiri-lo.

DM: Há quem fale de trezentas páginas de absoluta leitura voraz, sôfrega e entrega intensa ao acto primordial de ler. Há também quem diga que é um simples livro de intriga e maledicência e há outros ainda que dizem tratar-se mesmo de uma jogada de marketing moderno. De uma vez por todas, Doutor Mara, só a verdade importa nos tempos que correm...de que trata verdadeiramente o seu opúsculo?
Doutor Mara: Posso garantir-vos que este livro é uma súmula de páginas de memórias que ainda não existem, por assim dizer. Um livro de memórias falhado, evidentemente, pois ainda não tenho experiência (s) de vida nem resenha biográfica digna desse nome. E que, por isso, não tenho lá nada escrito. Páginas em branco sem uma única palavra. Uma homenagem rápida e eficaz às minhas memórias presentes e futuras que estão por escrever. Quero-vos dizer, entretanto, que era o que mais faltava, agora ao fim de meio século de existência, desatar a escrever livralhada memorial. Creio que não tardaria a que me passassem a tratar por “Senhor Doutor Mara” ou então a fazer a pergunta de ocasião nos programas vespertinos de televisão: “Por favor, reverendíssimo Doutor Mara, para quando o segundo tomo das suas memórias?”. Acreditem, neste momento, era o pior que me podia acontecer, dedicar-me a destilar palavras por metro quadrado e a encher as livrarias com a minha verborreia narcísica e sentimental dos tempos antigos e dos dias passados. Poupem-me, por favor.

DM: Isso é inédito, Doutor Mara, com esta ninguém contava, é um facto. Ninguém conseguirá prever a reacção do mundo editorial português bem como os comentários da sua crítica aquando da publicação deste seu novo livro.
Doutor Mara: Por favor, não exagerem! Será uma pequena coisa para amigos, sem grande alarido. Eu sei que aproveitarão para tornar esta obra numa “besta célere” mas todas estas coisas me escapam, estão fora do meu controle, como sabem. A partir de uma certa idade e de um certo reconhecimento público, é necessário alguma paciência e alguma tolerância face aos gorgulhos do espectáculo de toda esta sociedade.

DM: E para quando é que está previsto o dia do seu lançamento?
Doutor Mara: Não há data marcada, nem consigo saber exactamente quando é que este livro estará pronto, depende da disponibilidade tipográfica. De qualquer modo, desconfio que vocês serão avisados com o respectivo convite. Um convite branco e em branco, como não podia deixar de ser.

DM: Muito obrigado, doutor Mara, pela sua memorável atenção para connosco. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Amanhã...




All I wanted was your time
All you ever gave me was tomorrow
All I wanted was your time
All you ever gave me was tomorrow





Tomorrow, álbum Circuses and Bread, The Durutti Column