segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Carlos Olyveira: Fotógrafo dos Dias que Passam!

A cidade é campo aberto para a respiração. Respiramos as ruas, as casas, os sólidos, corpos e luzes em movimento. Desse exercício diário de aproximação à existência vemos apenas aquilo que realmente importa, dedicamos especial cuidado à delicadeza dos gestos e prestamos ainda uma atenção inusitada pelas coisas que diariamente se repetem. Repetidamente, também nós, por aqui, vivemos e, tal e qual Bresson um dia disse: "Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração".
         A partir dessa rotina e dos hábitos que se instalam estamos, portanto, preparados para nos concentrarmos naquilo que muitas vezes nos parece descabido, focados nos gestos mais banais ou inesperados ou, quem sabe, detidos na permanência insistente dos traços que julgamos ser comuns. Um distinto louvor à passagem do tempo. Eis, então, que entra aqui o fotógrafo, enquanto conhecedor da urbe e do seu pulsar, narrador curioso por calcorrear os seus recantos e buscar a vida no interior das ruas e rostos de personagens conhecidos. A visão do fotógrafo fixa, portanto, cada instante que passa, obedecendo aos humores das sombras e da luz. À semelhança deste seu olhar, espreitamos também com ele o quotidiano trânsito da ilha em viagem, tornamo-nos cúmplices da sua paisagem e movimento. Alimentamos o corpo com estas imagens para de novo vibrar com a existência, afagando e abraçando estes registos enquanto diário visual, reconhecendo o corpo citadino e as suas indissociáveis figuras. Acompanhar este olhar carece de continuidade, de expressão e reflexão crítica. Contemplemos pois, a repetição dos gestos tal qual a cidade e os dias que julgamos ser nossos, pois é assim que acreditamos estar vivos. Carlos Olyveira é o fotógrafo dos dias que passam!

Soneto 34

Porque me prometeste um dia assim tão belo
E me fizeste andar sem que usasse o meu manto,
Deixando as nuvens baixas tomar o meu caminho
Escondendo o seu fulgor em nevoeiro imenso?
Não te basta brilhar pelas nuvens envolto
Pela tormenta, pois que não chega unguento
Que cura a ferida, mas não cura a desgraça?
Nem a tua vergonha me conforta o tormento:
Que a culpa do que peca traz só alívio leve
Àquele que mais sofre e suporta a ofensa.
    Mas as lágrimas suaves que o teu amor me dá
    São ricas e resgatam todo o mal que me fazes.

William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

Da Personalidade

"É muito estranha a facilidade com que as pessoas têm tendência para avaliar as outras isolando apenas algumas partes da sua personalidade."

Sigmund Freud, Correspondência (1910)

A Cada Um o Seu Olhar

Fotografia Carlos Olyveira

domingo, 11 de dezembro de 2016

[Quando M. me Enviou Sms]

Quando M. me enviou sms
a perguntar plo programa de fim-de-semana
senti a angústia da página em branco de sexta-feira
do cronista de domingo
mas depois lá esbocei este plano,
mais uma mnemónica, diria:
1.º mastigar a angústia como uma chiclete
ao som dos Táxi da altura em que a cuspia
sem qualquer preocupação com a pegada ecológica;
2.º passar pela secção dos Perdidos e Achados da PSP,
do Metro e dos STCP para ver se encontraram um
coração que há dias que não sinto o meu;
3.º listar todas as músicas de língua inglesa
que expõem um broken heart no refrão;
4.º desfazer a máxima:
«Toi, tu est un blogueur.
Moi, je suis une blagueuse.» (que construí a pensar no O'Neill)
sentindo-me digna de uma serviçal de Penélope, que as devia ter,
escondidas nas dobras da história, como escrevi a Z;
5.º rever o filme de Eris Riklis e deixar-te
sobre a tua mesinha de cabeceira este bilhete:
«Não verei o limoeiro crescer!»

Aviso ao leitor: pode começar pelo último ponto, passar ao terceiro, eliminar o segundo e acabar no primeiro. Pode mesmo não sair do primeiro. Ou passar todo o tempo no terceiro. E, se chegou até aqui, pode mesmo ignorar este poema.

Ana Paula Inácio, 2010-2011, Averno, Lisboa, 2011. (Respigado do blogue Hospedaria Camões)

O Olhar de cada um...

            “A grandeza da observação e a gestão do silêncio funcionam como principais instrumentos de aprendizagem. Mas algo me diz que cada um olha para o mar como olha para dentro de si mesmo.”

in “Os Últimos Marinheiros”, Filipa Melo, Edição Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Soneto 5

As horas em terno ofício emolduraram
Essa face gentil onde o olhar se demora
Hão-de ser as tiranas de si mesmas, as horas,
Como da fealdade que a perfeição supera.
Pois não repousa o Tempo, antes guia o Verão
Ao temível Inverno, para aí lograr;
A seiva enregelada, as folhas sem fulgor,
Soterrada a beleza, e em vez, desolação.
Assim, não fora a essência do Verão conservada,
Líquida prisioneira entre vítreas paredes,
O fruto da beleza por ela era roubado
E nem memória havia de beleza que fosse.
   Mas a flor, no Inverno, perde só a aparência,
   Sobrevivendo, doce, o que lhe deu substância. 


William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

2ºDIA


Arquiteturas Film Festival 2016

Penúmbria em São Miguel

Fotograma de Penúmbria de Eduardo Brito
      Penúmbria teve, ontem à noite, a sua apresentação junto do público de São Miguel, inserido no Arquiteturas Film Festival. Trata-se de um pequeno filme de nove minutos que nos devolve em imagens, música (Joana Gama) e palavras a magia do cinema. Eduardo Brito, conhecido enquanto fotógrafo e argumentista, transporta-nos, suavemente e sem mácula, para esse seu universo de imaginação e fantasia. O resultado é eficaz dado que há espetadores que acreditaram na verosimilhança daquele lugar. A curta insere-se assim nesse mosaico criativo do autor, essencialmente associado às “Terras Últimas” e demais "Finis Terras", que ultimamente lhe interessa explorar. Com uma narração firme, plena de humor negro, ainda que escorreita e sombria, este filme é, também ele, um gesto e propósito arquitetónico que nos sugere a possibilidade de habitá-lo.  

A famosa capa de chuva azul


"It's four in the morning, the end of December
I'm writing you now just to see if you're better
New York is cold, but I like where I'm living
There's music on Clinton Street all through the evening."
Leonard Cohen

in"Famous Blue Raincoat" que se encontra no disco "Songs of Love and Hate", gravado no ano de 1970 durante os meses de Agosto e Setembro, editado apenas na Primavera do ano seguinte. Trata-se portanto do terceiro álbum de originais do cantor canadiano recentemente falecido.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Andar de Cima

De vez em quando as coisas acontecem,
subimos as escadas do prédio
e às vezes tropeçamos, deixamos
cair o saco das compras e as tangerinas 
rolam pelas escadas a baixo,
ou rolamos nós pelas escadas a baixo
e quando paramos estamos no meio da rua,
fora da ternura, fora do tecto.

in "Casas" de Miguel Castro Caldas, Livrinhos de Teatro, Artistas Unidos, edições Cotovia.