DM: Caro Doutor Mara, boa tarde, sabemos que se encontra a preparar mais uma conferência de grande envergadura, certamente em mais um tema fracturante para a sociedade portuguesa. Será que nos pode levantar o véu daquilo que iremos ouvir muito em breve e que é motivo da sua total entrega, dispêndio de tempo e de energia?
Doutor Mara: Sim, posso, sem qualquer problema. Não há aqui qualquer segredo, permitam-me que vos diga, pois ultimamente tenho tentado perceber como funciona o ócio na sociedade portuguesa e demais. A Conferência versa a inacção, isto é, o que é isso de ser improdutivo numa sociedade e num planeta que já vimos produzir de forma explosiva e excedentária e que caminha rapidamente para a sua extinção. No entanto, apesar da elevada produção, consumo, desperdício e extinção dos seus recursos naturais, reparem bem na quantidade de gente desempregada que estas sociedades geram e a angustia de todos aqueles que não encontram trabalho e consequentemente dinheiro para suprir as suas necessidades básicas do dia-dia. Com estas máquinas e toda a panóplia tecnológica existente, o "exército" da produção necessita cada vez menos de "soldados". Há, portanto, perguntas que têm que ser feitas: O que fazer com o tempo livre que aí vem? O que fazer nas horas de ócio? Será que estão a pensar taxar a preguiça? O que pensam fazer com tanta gente que não possui dinheiro para comprar o ócio que lhes oferecem?
DM: Certo, Doutor Mara, compreendemos. Mesmo assim o que será do mundo e das nossas sociedades se não houver gente que produza e coloque alface fresca pela manhã no mercado municipal?
Doutor Mara: Percebo a vossa inquietação, mas o meu estudo e, neste caso esta minha prelecção, vai irreversivelmente noutro sentido, pois interessa-me sobretudo estudar o lado ocioso, o "dolce fare niente" contemporâneo, o sector mesmo improdutivo das nossas sociedades. Interessa-me essencialmente esta gente que passa os dias recluso nas suas casas e quartos ou ainda parados nas praças e nos mercados sem nada para fazer, ainda que muitos deles com imensas histórias para contar. A conclusão a que eu chego é que a nossa sociedade já não sabe viver com o tempo livre que dispõe. É muito curiosa a expressão "tempo livre", não é? Tenho, por assim dizer, uma imensa ternura pelos vadios, boémios, marialvas, estoura-vergas, valdevinos e, demais criaturas e seres improdutivos que, sem prejudicar ou extorquir o próximo, conseguem encontrar o seu espaço nesta sociedade do deve e haver. Penso ainda assim que é preciso muito, mas mesmo muita imaginação para conseguir sobreviver, ainda que com alguns trocos, evidentemente.
DM: Curioso o que nos acaba de dizer, Doutor Mara. Será que podemos considerá-lo um defensor acérrimo do ócio criativo?
Doutor Mara: Eu gostaria mas nem sempre consigo tornar o meu próprio ócio criativo, o mesmo penso que acontece convosco, não é assim? Deixe que vos conte uma história: tenho um amigo que, em plena adolescência, a sua casa de banho mais parecia uma biblioteca pública, ainda que a maioria dos livros fosse da Walt Disney e afins. Os pais pensavam que ele iria tornar-se um brilhante leitor e, posteriormente, num excelente estudante. No entanto, ele em vez de ter ficado viciado no Tio Patinhas desenvolveu uma enorme empatia com o Zé Carioca, encerrando-se nesse universo de ócio e preguiça do qual nunca mais se libertou. Curioso, não é? Hoje é dono de uma livraria com livros em segunda mão, aquilo a que se chama um Alfarrabista. É perito em raridades bibliográficas, "monos" e livros de bolso. Abre às seis da tarde e fecha às oito da noite, dependendo da clientela. Nunca o vi a dizer um palavrão.
DM: As pessoas quando têm férias ou tempo disponível costumam viajar para paraísos turísticos, sítios exóticos, quanto mais excêntricos, melhor. O que é que o Doutor Mara que estuda com afinco estes assuntos tem a dizer sobre isto?
Doutor Mara: Muito pouco, ou quase nada, evidentemente. Ainda que conheça um indivíduo que gosta de passar férias em zonas de guerra ou conflito armado eminente. Já vi fotografias deste em situações de guerra, junto de carros armadilhados e bombas a explodir ou em ambientes hostis, a ferver de adrenalina e intensidade. Vi-o, inclusive, na selva da Rodésia a fugir de um leão faminto, tendo sido salvo pela trompa de um elefante que o ajudou a subir um muro. Há gostos para tudo, creio que nestes casos, é ter algo para contar e sair de um aborrecimento contínuo para uma ou duas semanas de aventura. Tudo isto talvez sejam consequências de uma sociedade impreparada para o verdadeiro ócio...para o usufruir verdadeiramente de um tempo livre em que os indivíduos é que devem ter a última palavra a dizer! Normalmente vão atrás da primeira frase que lhes dizem: o hotel em frente ao mar, a temperatura da água e as águas cristalinas, o gelado de seis sabores. A maior parte das vezes, aborrecem-se e apanham o avião de volta. Nada a fazer.
DM: Conte-nos, Doutor Mara, como é que costuma ocupar os seus tempos livres?
Doutor Mara: Faço aquilo que o comum dos mortais normalmente faz: corto as unhas, lavo os dentes, dou um passeio pela cidade ou à beira-mar, escrevo cartas em folhas de papel branco, componho canções de inverno e veraneio, vagueio com livros pelos cafés da cidade, planto erva-doce e rúcula, participo no mercado de trocas e, sobretudo, durmo de papo para o ar e de boca aberta. Normalmente, entra mosca.
DM: Uma pergunta bastante pessoal pois soubemos que o seu plasma ainda se encontra dentro de uma caixa de papelão. Onde é que vê televisão: fora de casa ou na Internet ?
Doutor Mara: É muito, muito raro mesmo ver essa caixa que de facto mudou o nosso mundo. Neste período de chuvas fortes, peço à vizinhança, dado não conseguir ver televisão sozinho. Incomoda-me imenso a chuva a cair com as bátegas de chuva a bater nas vidraças e eu ali a ver televisão, como se não houvesse mais nada para fazer. Tenho a sorte dessa família ser bastante numerosa e ocorrer passarmos serões a discutir a programação dos diferentes canais. Por vezes, dão-se debates muito interessantes que ninguém quer deixar de mandar a sua bicada, como se costuma dizer. Há dias discutimos sobre o que é isso do serviço público de televisão. Dei-lhes o exemplo do desaparecido TV Rural...um programa sobre o mundo rural feito na altura para citadinos...tinha bastante audiência.
DM: O que significa a palavra trabalho para si?
Doutor Mara: Será que é que aquilo que fazemos por prazer ou obrigação? Não sei.Ando há dezenas de anos a tentar perceber se o trabalho liberta...custa muito acreditar neste premissa. (Toca o telefone). Desculpem, é trabalho, estão a pedir-me serviços, sentido de missão e sapiência...vou ter que voltar ao meu estudo, peço imensa desculpa!
DM: Para terminar, uma pergunta um pouco absurda, mesmo assim não podemos deixar de a fazer: o que é que espera estar a fazer daqui a dez anos?
Doutor Mara: Nada. Absolutamente nada!
DM: Muito obrigado, Doutor Mara! Um bom serão para si e esperamos vê-lo entretanto!
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