Num multibanco citadino junto de uma sumptuosa catedral vemos o Doutor
Mara carregando pequenos envelopes usados e acabados de comprar, ainda que de
sandálias, toalha e calções de banho. Vemos, no entanto, que está com um
semblante deveras pesado e apreensivo, o que não é seu timbre. Será que todo
este clima geral de apreensão e sufoco económico que nos encontramos a viver já
chegou aos digníssimos aposentos de Doutor Mara? Se assim for, podemos afirmar
que estamos perante uma catástrofe, uma calamidade nacional, concorda?
Doutor Mara: Com corda ou sem
corda, não sei que vos diga, não sei. Sinceramente, começo a ficar preocupado.
São muito bonitas essas ideias do regresso ao campo mas o dinheiro que possuo
não dá nem para comprar um pequeno curral para lá meter uma vaca a pastar e,
mesmo que quisesse viajar como aconselham, somente podia ir para países onde
ainda se pode beber água da torneira dada a minha secura constante e
intermitente. E, sabe-se, que é cada vez
mais raro encontrar água potável de qualidade. Aproveito para vos dizer, meus
caríssimos amigos e, com o devido respeito por quem tem familiares que são
profissionais nestas instituições bancárias e financeiras, que irei retirar
durantes estes dias iniciais primaveris todo o meu dinheiro ganho à custa do
meu trabalho e das poupanças que fui
efectuando ao longo da minha existência.
DM: Por alguma razão em concreto, Doutor?
Doutor Mara: Todas e nenhumas
ao mesmo tempo. Faço isto antes que o exército de impostos e as brigadas
financeiras que tomaram o poder mundial e que nunca construíram qualquer ponte,
viaduto ou rotunda, vivendo exclusivamente da especulação financeira e do
espremer da bolha económica, qualquer dia se apoderem das parcas poupanças que
me restam. Por outro lado, arranjei uma almofada/travesseiro com lã de ovelha
merino com uma bolsinha muito em conta e que consegue aguentar cerca de dez mil
euros bem acolchoados e eficazmente protegidos. Fonte segura comunicou-me que,
em caso de incêndio ou explosão, liberta um gás que faz com que a bolsa encete
de imediato um voo género zeppelin e procure num raio de trinta metros pessoas
vestidas com lã para que assim efectuar um curioso ricochete. Se estiver por
perto, não perderei nada, como devem calcular.
DM: Doutor, nunca poderíamos pensar que o dinheiro tivesse capital
importância para a sua existência. Chegamos mesmo a pensar que estávamos na
presença de um bom samaritano ou mesmo de um franciscano. Muito sinceramente,
caríssimo Doutor Mara, é a queda de um mito. Como é que isto foi possível?
Doutor Mara: Nos dias que
correm só acredita em mitos quem quer. Sabem, tenho uns pequenos luxos que não
abdico, alguns são de sobremaneira conhecidos e que não posso nem quero
prescindir deles, mesmo em períodos de crise. Por exemplo, uma boa dose diária
de frutos secos (sabemos o que cada saca custa, os olhos da cara, posso mesmo
afirmar que estão pela hora da morte). Não consigo deixar de ir pelo menos duas
vezes ao cinema por semana e ir a um concerto musical, ou de comprar um jornal
português e estrangeiro ao domingo, ou ainda beber um “mosquito” (pequena dose
de medronho) no fim de jantar ou mesmo de fumar a minha cigarrilha Monte Cristo
todas as sextas-feiras à meia-noite invariavelmente, mais minuto menos minuto.
São coisas sem importância mas que fazem toda a diferença...
DM: Pequenos luxos, portanto, doutor Mara. O que vai de encontro a essa
célebre frase de Oscar Wilde (1854-1900)
que podemos ler na sua t-shirt bem estival: “Quando era jovem, pensava que o
dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho a certeza”. Acredita
mesmo nisso, Doutor Mara?
Doutor Mara: Tem dias, tal
como o chocolate. Mas estou convicto que é melhor acreditar que sim pois
estamos perante uma máquina mundial e, por que não nacional, de produção de pobres
e de pobreza que parece nunca ter fim. Há, inclusive, agora uns sábios
engravatados, sem vergonha e sem escrúpulos que, no cúmulo da indecência, andam
a tentar convencer-nos que já fomos pobres e bastante felizes ou que acreditam
mesmo que é assim que devemos ficar…
DM: Era no tempo da côdea de pão e da meia sardinha…
Doutor Mara: E com muita
ordem e respeitinho nas ruas! Sinceramente, não vejo problema algum em se comer
meia sardinha por dia nem tão pouco comer um bife por semana. Ninguém morre por
causa disso, pois claro. Mas isso podia ser uma escolha e não uma imposição,
não é assim? Não há mal nenhum em fazer uma alimentação sustentada em soja,
leite, ovos e cereais. Bem pelo contrário, uma parte considerável dos
restaurantes vegetarianos estariam cheios de gente e poupava-se na carne
animal.
DM: Uma das consequências de só se falar de dinheiro na nossa sociedade
é que se deixou de ter orgulho nas profissões que valorizam as mãos, os mais
novos já não vestem fatos lindos ao domingo ou
cantam canções tradicionais, uma nação inteira que deixou de investir na
aprendizagem e na curiosidade. Parece que o dinheiro tomou conta de tudo e de
todos, o que é horrível. Será assim, caríssimo Doutor Mara?
Doutor Mara: Não exageremos,
não exageremos. É verdade que não há pasquim, programa de televisão ou roda de
conversa e de amigos onde não se fale de taxas, impostos, créditos e débitos,
dívidas, bolsas, subsídios, descontos…no fundo, dinheirito a mais ou a menos. É
o centro de todas as conversas, vive-se para o ter, para o dividir e
multiplicar e é motivo de encontro, heranças e discórdias entre as famílias.
Bem, desisto do meu mergulho primaveril. Vou imediatamente para casa para ver
um filme que ando há anos para o ver e só agora me enviaram o dvd – “Dinheiro”
de Marcel L'Herbier, um filme mudo de mais de três horas. Uma sessão difícil,
portanto.
DM: Boa sessão, Doutor Mara. Até um dia destes.
Directamente da Kaput Mundi, onde me encontro a desenvolver a Páscoa, agradeço tão belo texto e envio um espontâneo abraço ao meu amigo Dr. Mara.
ResponderEliminarJaneiro Alves