Espero que esta carta o encontre favorecido nas suas faculdades mentais e na boa forma física, já que ambas são o antídoto para este marasmo social a que nos submeteram. E desejo que a força construtiva e criadora do século XXI encontre em si um fiel entusiasta, para gáudio dos que o rodeiam, e para preservação do nosso património futurista.
Agradeço
ao meu caro amigo por ter levantado o véu sobre o plano de Vivaldo. Parece-me
bem arquitectado, mas ambicioso quanto à sua execução, tendo em conta as forças
de bloqueio. Ainda ontem fiquei bloqueado num elevador, e sei que não foi um
infortúnio casual. Temos de estar atentos, Dr. Mara... Quanto à sua amiga que
partiu, a mais bela das manas Manaias, estou certo que a distância que vos
separa criará uma aceleração de partículas à volta dos assuntos do coração, mas
lembre-se que o fogo de artifício só brilha no escuro. Sugiro-lhe que
experimente cuspir as borboletas que tem no estômago, é benéfico encontrarem o
seu caminho ao invés de morrerem nos ácidos estomacais. Mas quem sou eu para
falar de amores e desamores... prefiro falar de conservas e enlatados.
Depois
das intermináveis viagens de comboio pelos grandes maciços europeus, caí de
paraquedas na grande cidade, junto ao burburinho ininterrupto das coisas da
vida quando estão todas juntas. A polícia apreendeu-me o paraquedas, mas
libertou-me sem caução. Habito, como sempre, ao pé de uma estação de comboios,
medida de precaução. Gostaria de lhe deixar algumas impressões sobre esta
mudança, mas agora não posso. Tenho de ir fazer o jantar. Gosto de jantar a
horas quando estou sozinho. Voltarei a este assunto mais tarde.
Caro
Dr. Mara, aqui estou eu de volta e mais aconchegado pelo bacalhau espiritual e
alguns decilitros de vinho do bom. Compra-se sempre vinho de qualidade perto
das estações de comboios. Depois de alguns anos em isolamento nas montanhas, e
depois de lidos muitos livros à luz da vela, experimento agora os antípodas,
vivo as histórias da cidade, o frenesi e a novela quotidiana de cá andarmos uns
com os outros. Larguei o comboio para andar a pé, e pelas ruelas da cidade
sinto os cheiros a comida acabada de fazer por entre a roupa pendurada, a mãe
que chama o filho, o homem do talho que alerta o freguês, o taxista aos gritos
pela janela fora, da sua viatura em transgressão. Ninguém responde a ninguém, é
som de fundo nas ruas como músicas de natal. Agrada-me observar as pessoas, e
perceber o que é que afinal andam a fazer. O Dr. Mara não imagina a quantidade
de gente que anda de trás para a frente e de frente para trás, e também de um
lado para o outro. Fazem tudo a correr para depois irem para as suas casas. À
noite, a luz firme das casas faz-me acreditar que o direito a ter um tecto
deveria estar consagrado em todas as escrituras, mas sobretudo na preposição da
vida. O Dr. Mara não imagina a angústia que é para mim ver alguém a dormir na
rua, e a fazer de uma velha arcada o seu abrigo. É que o abrigo não serve só
para abrigar o corpo, mas também a alma.
A
luz da cidade é favorável ao romantismo, não pela luz em si, mas pelo facto de
ela incidir directa e indirectamente na beleza arquitectónica geométrica ou
orgânica. A cidade é como uma casa grande cheia de assoalhadas, portas e
janelas, elementos decorativos e cores vibrantes, em que o tecto é um enorme
céu azul. Na cidade não há vizinhos, moramos todos na mesma casa. Pelos
extensos e sinuosos corredores desta enorme moradia ouve-se musica, poesia,
conversas, discussões, confusões, trambolhões e outras sonorizações da dor de
viver. Na cave há contrabando e jogos ilícitos. No hall principal duzentos
milhares de visitantes amontoam-se para entrar e outros tantos para os receber.
Nas escadarias, um corropio acima-abaixo. No terraço todos se encontram ao fim
da tarde para admirar a obra da humanidade. Talvez sejamos uma praga, mas como
é bela esta praga.
Já
vai longa esta missiva. Deixo para o fim um assunto que me preocupa, e cujo
cariz sensível me leva a simplificar. Soube por fontes de informação de grande
fidelidade, através dos mais conceituados informadores da nossa praça, aqueles
que por vezes arriscam a própria vida para recolher informações nos mais recônditos
antros do secretismo, que o Dr. Mara foi deslocalizado. Não que tenha sido
desprovido de um local, pois isso seria aritmeticamente impossível, mas terá
sido "transplantado" para outro contexto. Espero sinceramente que se
adapte ao novo terreno, que apanhe muito sol e que seja devidamente regado,
pois sei que por onde passa, deixa sempre bons frutos.
Um abraço
Janeiro Alves
Também eu gosto de estações de comboios (sem TGV pf), Janeiro Alves! Relativamente a Dr. Mara, estou certa florescerá nesse novo chão.
ResponderEliminarana inácio