terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Uma Missiva Citadina de Janeiro Alves!

Meu caro Dr. Mara,
         
         Espero que esta carta o encontre favorecido nas suas faculdades mentais e na boa forma física, já que ambas são o antídoto para este marasmo social a que nos submeteram. E desejo que a força construtiva e criadora do século XXI encontre em si um fiel entusiasta, para gáudio dos que o rodeiam, e para preservação do nosso património futurista.
         Agradeço ao meu caro amigo por ter levantado o véu sobre o plano de Vivaldo. Parece-me bem arquitectado, mas ambicioso quanto à sua execução, tendo em conta as forças de bloqueio. Ainda ontem fiquei bloqueado num elevador, e sei que não foi um infortúnio casual. Temos de estar atentos, Dr. Mara... Quanto à sua amiga que partiu, a mais bela das manas Manaias, estou certo que a distância que vos separa criará uma aceleração de partículas à volta dos assuntos do coração, mas lembre-se que o fogo de artifício só brilha no escuro. Sugiro-lhe que experimente cuspir as borboletas que tem no estômago, é benéfico encontrarem o seu caminho ao invés de morrerem nos ácidos estomacais. Mas quem sou eu para falar de amores e desamores... prefiro falar de conservas e enlatados.
        Depois das intermináveis viagens de comboio pelos grandes maciços europeus, caí de paraquedas na grande cidade, junto ao burburinho ininterrupto das coisas da vida quando estão todas juntas. A polícia apreendeu-me o paraquedas, mas libertou-me sem caução. Habito, como sempre, ao pé de uma estação de comboios, medida de precaução. Gostaria de lhe deixar algumas impressões sobre esta mudança, mas agora não posso. Tenho de ir fazer o jantar. Gosto de jantar a horas quando estou sozinho. Voltarei a este assunto mais tarde.
        Caro Dr. Mara, aqui estou eu de volta e mais aconchegado pelo bacalhau espiritual e alguns decilitros de vinho do bom. Compra-se sempre vinho de qualidade perto das estações de comboios. Depois de alguns anos em isolamento nas montanhas, e depois de lidos muitos livros à luz da vela, experimento agora os antípodas, vivo as histórias da cidade, o frenesi e a novela quotidiana de cá andarmos uns com os outros. Larguei o comboio para andar a pé, e pelas ruelas da cidade sinto os cheiros a comida acabada de fazer por entre a roupa pendurada, a mãe que chama o filho, o homem do talho que alerta o freguês, o taxista aos gritos pela janela fora, da sua viatura em transgressão. Ninguém responde a ninguém, é som de fundo nas ruas como músicas de natal. Agrada-me observar as pessoas, e perceber o que é que afinal andam a fazer. O Dr. Mara não imagina a quantidade de gente que anda de trás para a frente e de frente para trás, e também de um lado para o outro. Fazem tudo a correr para depois irem para as suas casas. À noite, a luz firme das casas faz-me acreditar que o direito a ter um tecto deveria estar consagrado em todas as escrituras, mas sobretudo na preposição da vida. O Dr. Mara não imagina a angústia que é para mim ver alguém a dormir na rua, e a fazer de uma velha arcada o seu abrigo. É que o abrigo não serve só para abrigar o corpo, mas também a alma.
       A luz da cidade é favorável ao romantismo, não pela luz em si, mas pelo facto de ela incidir directa e indirectamente na beleza arquitectónica geométrica ou orgânica. A cidade é como uma casa grande cheia de assoalhadas, portas e janelas, elementos decorativos e cores vibrantes, em que o tecto é um enorme céu azul. Na cidade não há vizinhos, moramos todos na mesma casa. Pelos extensos e sinuosos corredores desta enorme moradia ouve-se musica, poesia, conversas, discussões, confusões, trambolhões e outras sonorizações da dor de viver. Na cave há contrabando e jogos ilícitos. No hall principal duzentos milhares de visitantes amontoam-se para entrar e outros tantos para os receber. Nas escadarias, um corropio acima-abaixo. No terraço todos se encontram ao fim da tarde para admirar a obra da humanidade. Talvez sejamos uma praga, mas como é bela esta praga.
       Já vai longa esta missiva. Deixo para o fim um assunto que me preocupa, e cujo cariz sensível me leva a simplificar. Soube por fontes de informação de grande fidelidade, através dos mais conceituados informadores da nossa praça, aqueles que por vezes arriscam a própria vida para recolher informações nos mais recônditos antros do secretismo, que o Dr. Mara foi deslocalizado. Não que tenha sido desprovido de um local, pois isso seria aritmeticamente impossível, mas terá sido "transplantado" para outro contexto. Espero sinceramente que se adapte ao novo terreno, que apanhe muito sol e que seja devidamente regado, pois sei que por onde passa, deixa sempre bons frutos.
Um abraço
Janeiro Alves
         

1 comentário:

  1. Também eu gosto de estações de comboios (sem TGV pf), Janeiro Alves! Relativamente a Dr. Mara, estou certa florescerá nesse novo chão.

    ana inácio

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